Educação para a morte: produto em falta (Ayala Gurgel)

A questão da morte e do morrer atinge a todos, mas, aos profissionais de saúde que atuam em ambiente hospitalar atinge de forma mais acentuada, uma vez que não têm que se preocupar apenas com a sua morte ou com a morte dos seus entes queridos, ela é também um desafio que faz parte do cotidiano profissional. E, dentre todos esses profissionais, médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais são os que mais se expõem diariamente a essa tensão, cada qual na sua dinâmica, o que não significa mais preparados. As pesquisas sobre a formação do profissional de saúde para lidar com a morte e o morrer mostram que muitos relatam sentimentos de impotência e frustração perante a imprevisibilidade da trajetória da morte. Tais sentimentos podem levá-los à obstinação terapêutica, ou a prática da distanásia, no que diz respeito a uma inexorável tecnologização dos cuidados médicos. Nesse sentido, a presença de um comportamento obstinado que vê a morte como frustração terapêutica interdita a dignidade humana na hora da morte, fazendo com que paciente e familiares sejam impedidos de realizar seus rituais de despedida. O resultado tem sido a geração de prejuízos psíquicos incalculáveis para todos os envolvidos, inclusive para os profissionais. Acredita-se que um dos causadores desse comportamento é produzido pelo que se conhece como afastamento acadêmico com a questão da morte e do morrer. Ou seja, devido a ausência daquilo que Maria Júlia Kovács chama de Educação para a morte. Essa hipótese pode ser verificada por meio dos poucos conteúdos que abordam a questão tanatológica nos cursos de Saúde, considerados como insuficientes, pois não vão além da discussão acadêmica de conceitos e testes diagnósticos. Ou quando muito, da discussão acadêmica sobre algumas questões éticas e emocionais que envolvem basicamente a morte social e a causa mortis. Nesse sentido, a compreensão da morte como um fenômeno ao qual se está exposto diariamente (presenciando, ou tentando lutar contra) e com o qual se deveria saber lidar, se encontra ausente da maioria dos currículos. Postula-se, portanto, que, desprovido de formação acadêmica e tendo que responder concretamente aos desafios cotidianos no ambiente de trabalho, o profissional é obrigado a atuar com base em outras aprendizagens sobre o assunto, o que muitas vezes é insuficiente, quando não inadequado.

Eu vi a morte de perto (Luiz Cesar)

Sempre me causou espécie dizer : fulano está morto. Durante 25 anos tive problemas com a morte concreta .Hoje ela é minha companheira, por isso estou vivo demais. Todos morremos , mas morremos como vivemos , morremos desiguais . Muitos de nós já morremos sem saber que estamos mortos , alguns chamam essa morte de morte interior. Eu vi a morte de perto e ela não me assustou .

O "Acolhimento" da Morte (Erasmo Ruiz)

Faz bem voltar a origem das palavras. As vezes descobrimos os reais sentidos que se perderam pelo caminho ou que ganharam ambiguidades metafóricas. Assim acontece com a expressão "paliar" que pode ter o sentido da ajuda e da minimização do sofrimento quando da impossibilidade da eficácia terapêutica ou, então, pode ter um sentido mais negativo quando se pensa em soluções que apenas contornam os problemas sem a busca efetiva de uma resolução. Mas no caso de "acolhimento", parece que a história foi mais bondosa. A palavra vem do latim"acolligere" que se desdobra em múltiplas significações em nossa língua como oferecer agasalho, hospedar, dar crédito a alguém, confiar, dar ouvidos, acatar, receber, atender. Óbvio que esses significados podem ganhar novas figurações na língua, mas o importante a ressaltar é que "acolher" desde os seus primórdios parece guardar o sentido da inclusão, do oferecer espaço, conforto e abrigo.

Ora, não acolhemos o "nada". Acolher siginifica entre inúmeras coisas, aproximar-se de alguém, estar perto, trazer para algum lugar, receber. É nessa teia de interações que o acolhimento se afirma como diretriz da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde (PNH/MS). Não vou delongar-me nessa afirmativa pois uma discussão mais extensa do acolhimento enquanto diretriz pode ser vista em artigos e, mais especificamente em cartilha para download (Acolhimento nas práticas de produção de saúde. 2 ed., 2006. ). Mas, no momento, cabe afirmar que ter o "acolhimento" como princípio implica numa remodelação radical dos serviços de saúde, trazendo formas de sociabilidade já claramente postas e demarcadas em outras instâncias da vida, potencializando sua capacidade e criatividade para acolher pedidos e expressões de vulnerabilidade, escutar qualificadamente e analisar esses pedidos oferecendo respostas que sejam adequadas aos usuários. A adequação dessa resposta tem que necessariamente oferecer soluções práticas à demanda. De nada adiantará receber com conforto, saber ouvir de forma solidária se não pudermos encaminhar a gestante a um serviço que possa recebe-la frente a iminência do parto.

O acolher muitas vezes coloca-nos desafios que parecem intransponíveis. Por exemplo. Muitos trabalhadores relatam das dificuldades de se receber bem os dependentes de álcool nos serviços. Nestes casos acolher, ouvir e resolver acabam sendo engolfados pela interpretação tradicional do alcoolismo como uma "doença moral". Assim, não acolher ou atender mal acabam sendo expressões do desejo de punir alguém que está agindo contra os valores e crenças do profissional. Aqui temos que atuar na mudança de percepção que transforme o problema moral em problema de saúde.

Existem outras situações onde o acolher acaba esbarrando na crença de que "nada mais há para ser feito". Falo especificamente de como a morte parece ser vivenciada na maior parte dos serviços de saúde. Aqui tomo a liberdade de explicar o sentido das aspas colocadas na palavra "acolhimento" no título deste post. Na verdade, nunca acolhemos a morte pois ela não é um ser vivo possuidora de cabeça, tronco e membros. Acolhemos sim pessoas que estão morrendo e seus familiares, acolhemos conflitos e necessidades muito específicas, acolhemos sintomas muitas vezes de difícil manejo, acolhemos sentidos e percepções que nos forçam a refletir sobre aspectos de nossa própria existência. A questão fundamental é que , na maioria dos serviços, parece que não estamos acolhendo bem as pessoas que estão morrendo.

Os moribundos acabam negando o hedonismo coletivo, não são seres "bonitos" de se olhar e podem estar sinalizando para o nosso futuro estágio de vulnerabilidade e decrepitude. O morrer parece não estar cercado pela beleza física tal como é explicitada na mídia e, em muitas circunstâncias, pode expressar dores física e psíquicas muito intensas. Em parte essas dores se amplificam na medida em que os profissionais se prendem a velhos paradigmas e insistem em continuar tratando terapeuticamente aqueles que precisam de cuidados paliativos. Também nos afastamos dos moribundos porque eles sinalizam os limites dos nossos saberes, corroem nossa fantasia de onipotência ao afirmarem que a morte não pode ser combatida. Tendemos a nos afastar dos moribundos pela sensação de impotência ao lidar com suas necessidades existenciais e de achar que no campo das práticas que aprendemos, nada mais poderia ser feito. Por fim, nos afastamos dos moribundos porque não aprendemos desde a mais tenra infância a constituir o que os filósofos chamam de "Ars Moriendi", uma arte de morrer que nos prepararia para a morte, criando conceitos éticos, morais e estéticos transmitidos livremente pelos processos de educação formal e informal.

Por não acolher adequadamente o usuário que está morrendo e sua rede de relações, uma prática de saúde que poderia estar produzindo conforto acabaria produzindo o seu contrário. Temos, assim, que buscar uma nova atitude diante da morte e do morrer nos espaços de saúde. Para tal empreitada poderíamos começar a discutir alguns tópicos, por exemplo:

a) Acolher as necessidades existenciais diante da morte: cada necessidade diante da morte e do morrer expressa-se com dramaticidade redobrada na medida em que se configuram como últimas necessidades a serem vividas, não permitem postergação. Neste sentido, aspectos aparentemente marginais a um projeto de atenção focado nas intercorrências médicas devem ser focalizados. Tornar livre o acesso de familiares, prestar mais atenção a fala do usuário e de sua família, buscar soluções para pedidos de visita, pedidos de alimentação que transgridam dietas, enfim, se devemos tentar viabilizar as necessidades do usuário dentro de nossas possibilidades como um princípio de acolher bem, diante da morte essas possibilidades devem ser conscientemente alargadas.

b)Acolher os conflitos e necessidades das familias. Aqui família deve ser o mais ampliada possível na medida em que muitas vezes o vivenciar a morte pode tornar pais distantes de filhos e vice-versa. Neste sentido, a "família" pode ser o vizinho, um grande amigo ou então o cuidador de um outro paciente que se solidariza frente ao que ele encontra no hospital. Já presenciei situações onde médicos dizem que usuários estão incapazes de se comunicar enquanto seus familiares decodificam desejos a partir do aperto de mãos. Lidar com a morte é algo estressante diante da impotência e do radical redimensionamento na vida dos cuidadores. Neste sentido, o cuidar do usuário moribundo poderá representar problemas de saúde aos familiares que poderão ser incorporados a uma atenção mais integral.

c) Acolher as necessidades espirituais: tradicionalmetne a morte sempre foi algo significado a partir do sagrado. A busca de seu entendimento por concepções de mundo de cunho materialista é algo muito recente na história. Significa dizer que a maioria esmagadora das pessoas expressará diante da morte a necessidade de vivências espirituais como um estratégia para reduzir medos e ansiedades. É nossa obrigação privilegiar modos e espaços para que essas necessidades possam ser de alguma forma satisfeitas. Aqui tocamos num terreno complexo e fértil para a constituição de conflitos. Muitos gestores acabam fechando o espaço das enfermarias à presença de religiosos pois estes muitas vezes produziriam muito mais dor e sofrimento quando buscam conversões forçadas em meio as dores da morte. A solução aqui é tentar assumir o acordo de que as enfermarias não podem ser espaço de proselitismo e que a presença de pessoas que satisfaça as necessidades espirituais dos usuários seja alguém requisitado por ele mesmo. Ser afastado das possibilidades de vivenciar crenças e valores no momento da morte pode significar a ampliação da dor e da ansiedade de maneira bárbara e desumana.

d) Acolher as necessidades de ambiência: Na maioria das unidades hospitalares o cadáver imediatamente se transforma num problema higiênico. Os trabalhadores usam o termo "fazer o pacote" como sinônimo de preparo técnico do corpo o que, em nossa opinião, é uma maneira desrespeitosa e degradante de se referir ao corpo. Muitas vezes esse preparo é feito sem informação à família ou sem que alguém da família possa participar dele. Depois, o corpo segue um triste caminho. Pode acabar indo para um necrotério improvisado, repousando num tampo de mármore ilhado por sucata hospitalar para, depois, acabar saindo "discretamente" próximo a porta onde são recolhidos o lixo hospitalar. Óbvio dizer que se a família já se encontra vulnerável pela perda, por não ter uma relação objetal com o cadáver, acaba ficando chocada e indignada com essa conduta. Há que se buscar remodelar esses espaços de tal forma que eles expressem um sentido de dignidade, respeito e possibilidade de vivências espirituais tais como capelas mortuárias, necrotérios que sejam apenas necrotérios, espaço onde a família possa ter conforto e amparo emocional enquanto espera pelas providências de serviços fúnebres.

Acolher pessoas que estejam morrendo apresenta inúmeros desafios. Radicaliza nossa capacidade de acolher. Radicaliza nosso empenho de trabalhadores que não sejam apenas produtores de saúde mas que possam incorporar a esse papel algo tão importante quanto, que é, na ausência da possibilidade de cura, cerrar fileiras para mitigar o sofrimento humano em seu limite. Portanto, temos que minimizar o receio de falar sobre a morte, temos que incorporar essa discussão nos Grupos de Trabalho de Humanziação (GTH) , temos que ampliar o diálogo com usuários que estejam morrendo e seus familiares para ampliar nossa capacidade de acolher e cuidar bem, temos que refletir sobre nossa própria mortalidade não como um exercício depressivo mas como algo que implemente nossa solidariedade e capacidade de buscar a plenitude da vida. Se um dia não quisermos morrer em solidão, temos que acompanhar desde já as pessoas que estão morrendo!

Vida plena para todos nós!

O anúncio da Má Notícia (Ayala Gurgel)