A morte na Sociedade do Espetáculo (Ayala Gurgel)

A Sociedade Ocidental Industrializada tem como principal característica, no tocante à morte e ao morrer, desprovir o homem comum das habilidades sociais para conviver com a morte. Dois estratagemas são bastante usados para conseguir esse feito: a interdição e o escancaramento da morte.
A interdição consiste na retirada dos rituais públicos e domiciliares da morte do seio social e sua consequente transferência para locais privados, afastados do público, dentre os quais os hospitais são os preferidos. Trata-se de uma mercantilização da assistência ao moribundo e monopólio dos rituais tanáticos e fúnebres. A morte deixa de pertencer ao indivíduo e passa a pertencer ao Estado, sob a alegação de que aquela família enlutada (antecipatória ou póstuma) precisa de tempo para tocar sua vida, de que o Estado tem as melhores condições (geralmente tecnológicas) para fazer o "que há de melhor" por aquele moribundo.
Uma vez que o hábito tenha sido criado, o Estado passa a transferir paulatinamente esse papel para a empresa privada, fazendo com que familiares e moribundos paguem para não terem que conviver com a morte, graças à ausência de habilidades sociais que lhes foram alienadas.
Mas, um dia a morte precisará ser discutida. Não é possível escondê-la por muito tempo. Em algum momento alguém morrerá fora desse controle, sem tempo de ser levado às pressas, escondido por trás dos biombos, em público, como disse Chico Buarque, desafiando o tráfego e o trágico. Alguém amanhecerá morto embaixo de uma ponte, em um beco, em um acidente de carro.
Essa morte, como é inevitável e pública, foi elevada à categoria de espetáculo. Era a única forma de ela ser mostrada sem contradizer a lógica do sistema que nos inabilita para convivermos juntos.
O espetáculo pontencializa toda a normalidade, inclusive a emocional. Ele não se contenta com a emoção ordinária, precisa ser extraordinária; não se contenta com o mediano, precisa ser grande, o maior de todos, eterno mesmo quando efêmero.
Hoje, dia 01 de maio de 2009 é um exemplo de como essa morte foi devolvida ao público. Ao relembrar a cada ano a morte de Ayrton Senna, como poderia ser a morte de qualquer outro "herói", o elemento catártico é explorado na forma do oferecimento de um espetáculo. Podemos não só "ver" a morte (como um show de horrores no qual cada imagem precisa ser o mais impactante possível), como também expressar nossas emoções (o luto nacional se soprepõe ao luto pessoal, ou catalisa todas as nossas dores, afinal, com a morte do "herói", viramos órfãos).
O retorno da morte à Sociedade Industrial é mediada, portanto, pelo espetacular, pela morte escancarada, tal como aparece a cada dia nos jornais sensacionalistas, nos programas televisivos mais comprometidos com essa linguagem e, principalmente, na recusa de falar sobre a morte a partir de nossa banalidade, do dia a dia de cada um. Falar da morte de Ayrton Senna é a forma que encontramos para não falarmos da nossa morte, nós todos que andamos de carro e estamos sujeitos à mesma fatalidade... A nossa morte é apenas uma questão de tempo.

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