Reflexões sobre a Morte de Terry Schiavo (Erasmo Ruiz)

Em 31 de março de 2005 morria Terry Schiavo. Não foi uma morte qualquer. Seu processo de morrer mobilizou a opinião pública e acabou sendo a conseqüência d euma longa batalha judicial entre seu marido e a família. Ela foi mantida viva artificialmente através de um tubo que inseria alimentação em seu estômago, e isso aconteceu por mais de 15 anos. O que tornava a situação de Terry Schiavo tão especial? É que ela se colocava nos limites do que poderia ou não ser considerada uma vida consciente e autônoma, uma espécie de síntese bizarra entre os saberes religiosos e tudo aquilo que a tecnologia poderia dispor para o suporte da vida...mas de que vida? Muito já foi dito a respeito de sua morte. Vemos as fotos de Schiavo e nos deparamos com o seu olhar distante, e buscamos encontrar em seus olhos significados humanos. Percebemos súplicas, desejo de viver, sentidos de permanência e vem a Medicina com seu arsenal de conhecimentos nos dizer que tudo isso é reflexo, que na verdade o que vemos está muito mais posto no que gostaríamos de ver e não no que de fato está acontecendo. Aprendemos assim o conceito de "Estado Vegetativo Persistente", uma nova condição típica daqueles que tiveram uma parada cardíaca, ficaram muitos minutos sem oxigenação cerebral, mas foram trazidos de volta pela ação médica para ficarem com terríveis lesões neurológicas, algumas delas impeditivas de vida consciente e irreversíveis. O que existe de mais terrível no caso de Terry Schiavo é que, ela mesma, era conseqüência do nosso conhecimento da luta pela vida. Não fosse o desenvolvimento da medicina em criar as técnicas de ressuscitamento e de ampliar as possibilidades de suporte de vida, não estaríamos agora discutindo se os tubos deviam ou não ser desligados. A própria idéia de "desligar" parece nos remeter simbolicamente ao contexto de lâmpadas. O ser humano agora é uma luz que pode ser apagada pelo interruptor nas UTIs. Talvez Terry tenha chamado tanta a nossa atenção pela tragédia que ela anunciava. Se o ser humano nunca se conformou diante da morte e para isso inventou todo um arsenal de mitos, agora criamos a ilusão de que podemos detê-la indefinidamente. Aqueles que defendiam a manutenção dos suportes vitais para Terry talvez tenham se esquecido de que a vida, na sua condição de capacidade de usufruir do belo e da alegria, já havia abandonado Terry Schiavo. O que existia ali era uma casca bioquímica mantida viva pela nossa "´síndrome de onipotência". Existem momentos em que o homem deveria ser mais sábio e deixar a natureza seguir seu curso. A morte de Terry Schiavo encobre uma forma de eutanásia até então não notada a qual poderíamos chamar de "Eutanásia Envergonhada". Ao retirar os tubos que a mantinham viva, simplesmente se disse que o tratamento estava sendo suspenso, que isso expressava a vontade anterior da paciente agora respaldada pelo marido quando, num gesto misericordioso, teria sido melhor acabar logo com tudo isso, dar a Terry o caminho da libertação adiada por mais de 15 anos. Chega de eufemismos. Estamos precisando discutir as nuances que parecem diferir a eutanásia ativa da eutanásia passiva e que, em muitas circunstâncias pode ser mais eticamente defensável assumir que se a medicina parece ter a capacidade de conduzir a morte, em nome da dignidade do paciente, deveria também - em casos claramente delineados e com seu poder relativizado - governar objetivamente as formas de seu desfecho. Não é possível mais tolerar que estamos a mercê de vivermos sem "alma", ou, de estando conscientes, de perdermos a capacidade de governarmos a nossa existência quando ela fica imersa em dor e sofrimento insuportáveis, quando perdemos a capacidade de admirar as belezas do mundo. Decididamente, perdi toda e qualquer crença nas virtudes do sofrimento incomensurável. A defesa do sofrimento como forma de expiação e virtude podem esconder na verdade a latência do sadismo. Não se trata de associarmos a toda e qualquer idéia sobre a eutanásia a imagem de um campo de concentração com Dr Mengele atuando como anjo da morte. O seu não reconhecimento legal não impede que ela seja praticada disfarçada em medidas terapêuticas. Chega de expressões edulcoradas. Quando perdemos nossa capacidade de viver com um mínimo de dignidade, é chegada a hora de deixar a morte, como o fecho natural da vida, cumprir seu papel. Se nosso conhecimento criado para manter a vida e depois restituir parte da saúde começa a ser utilizado para afirmar a supremacia da dor e do sofrimento, para que este conhecimento vale? No caso de Terry Schiavo, parece ter valido financeiramente para os médicos que a mantiveram viva esse tempo todo. E para Terry, de que tudo isso valeu? Terry já estava morta para a pessoa mais importante em sua vida que era ela mesma. O que nos define como indivíduos não é apenas a posse de um organismo biológico mas todo um complexo conjunto de capacidades que nos habilita a percebermos esse mesmo organismo como dotado de um eu que, ao mesmo tempo em que significa e interpreta a realidade, é capaz também de significar e interpretar a si mesmo nessa realidade. Não ser dotado dessa capacidade é - sob o aspecto psicológico humano - não estar vivo! E assim, morreu Terry Schivo... mas ela já não estava morta? Para finalizar, ainda pensando na morte de Terry Schiavo, proponho uma variante à oração da Virgem Maria: (..,) Santa Maria , mãe de Deus Rogai por nós pecadores e que na hora de nossa morte o homem possa conformar-se na humildade dos seus limites. Livrai-nos da ressuscitação cardíaca. Livrai-nos de sermos entubados. Livrai-nos de termos o cérebro funcionando depois de interminável hípóxia. Livrai-nos de regressarmos a um oceano de dores. Livrai-nos de estarmos vivos sem a consciência das belezas da criação. Livrai-nos de sermos arrancados dos braços do seu filho! Livrai-nos de sermos arrebatados Do regaço da morte Para habitar os terríveis labirintos Das dores e medos nos hospitais. Livrai-nos dos males da Tanatocracia! Amém!

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