Luto e Depressão (Ayala Gurgel)

Luto e depressão não são a mesma coisa. Embora Freud (Luto e Melancolia) não reconhecesse claramente essa distinção, também não admitia similaridade, pois, na sua época, as informações sobre o assunto para validar uma reflexão mais acabada eram insuficientes. Por isso, qualquer relação que ele estabelecesse entre as duas categorias (o luto e a melancolia) estariam, inevitavelmente, comprometidas com tais condições. A sua saída foi considerar a melancolia (que pode corresponder clinicamente a depressão) como uma espécie patológica de luto. Ou seja, ela tem todos os elementos do afeto normal do luto, mas acrescidos do impulso de raiva. Impulso esse ambivalente que se direciona contra a pessoa falecida e para o interior do próprio enlutado: "O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante. Em algumas pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em vez de luto; por conseguinte, suspeitamos que essas pessoas possuem uma disposição patológica. Também vale a pena notar que, embora o luto envolva graves afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-lo a tratamento médico. Confiamos que seja superado após certo lapso de tempo, e julgamos inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele. Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição. Esse quadro torna-se um pouco mais inteligível quando consideramos que, com uma única exceção, os mesmos traços são encontrados no luto. A perturbação da auto-estima está ausente no luto; fora isso, porém, as características são as mesmas. O luto profundo, a reação à perda de alguém que se ama, encerra o mesmo estado de espírito penoso, a mesma perda de interesse pelo mundo externo na medida em que este não evoca esse alguém, a mesma perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor (o que significaria substituí-lo) e o mesmo afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a pensamentos sobre ele. É fácil constatar que essa inibição e circunscrição do ego é expressão de uma exclusiva devoção ao luto, devoção que nada deixa a outros propósitos ou a outros interesses. E, realmente, só porque sabemos explicá-la tão bem é que essa atitude não nos parece patológica" (Freud, Luto e Melancolia, 1976, p.261-262). A depressão pode ter como fator desencadeador o luto, mas não é correto identificar uma com o outro. Na ótica de Worden (Terapia do Luto, 1998, p.45), os principais motivos que temos para não identificá-los são: na reação normal de luto não ocorre a perda da auto-estima, o que é bastante comum no quadro clínico de um depressivo. As outras características podem ser as mesmas: sintomas clássicos de distúrbios do sono, distúrbios de apetite e tristeza intensa. Isso é coerente com as teses de Freud, pois, a presença de auto-estima como elemento diferenciador entre o luto e a depressão já tinha sido proposto por ele quando observou que "(...) O melancólico exibe ainda uma outra coisa que está ausente no luto, uma diminuição extraordinária de sua auto-estima, um empobrecimento de seu ego em grande escala. No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego" (Freud, Luto e Melancolia, 1976, p.263). Nessa perspectiva, o enlutado com uma reação afetiva normal não se volta contra si mesmo, sua raiva ou culpa está associada, de certa forma, a algo que fez ou deixou de fazer no mundo; a algo que faça ou deixou de fazer sentido. Já o enlutado com um quadro depressivo é diferente. Sua referência ao mundo é nula, um vazio pleno, de onde podem decorrer ideações suicidas, prejuízo funcional mórbido, retardo psicomotor ou duração prolongada do luto (WORDEN, 1998, p.46). Isso porque, quando o próprio ego se esvazia, nada mais passa a fazer sentido. Semelhança de raciocínio encontramos nos escritos de Heidegger (O que é Metafísica? 1999), quando discorreu sobre a angústia. Para ele, o homem angustiado perde toda e qualquer referência de sentido. Ele se sabe, mas não sabe o que o faz sentir o que sente: "Na angústia – dizemos nós – 'a gente se sente estranho'. O que suscita tal estranheza e quem é por ela afetado? Não podemos dizer diante de que a gente se sente estranho. A gente se sente totalmente assim. Todas as coisas e nós mesmos afundamo-nos numa indiferença. Isto, entretanto, não no sentido de um simples desaparecer, mas em se afastando elas se voltam para nós. Este afastar-se do ente em sua totalidade, que nos assedia na angústia, nos oprime. Não resta nenhum apoio. Só resta e nos sobrevém – na fuga do ente – este 'nenhum' (Heideggeer, O que é Metafísica?, 1999, p.56-57) Por essa razão, a sua conclusão é a de que a angústia é a manifestação do nada. Como manifestação do nada, a ausência de sentido deve prevalecer nas ações do homem angustiado. Ou melhor, a ausência de ações que, para ele, façam qualquer sentido. E isso inclui até mesmo querer morrer ou ter forças para fazê-lo quando o desejo existir. Mas, não pensemos que haja uma passagem natural do luto normal para um quadro depressivo. Ao contrário, as pesquisas de Jacobs (apud Worden, Terapia do Luto, 1998, p.46) mostraram que as pessoas que apresentaram quadros depressivos decorrentes do processo de enlutamento já tinham história de depressão ou de algum outro transtorno de saúde mental. Nesse sentido, o enlutamento não foi considerado a causa da depressão, mas o seu gatilho, e isso pode voltar a se repetir.

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