Morte e Imortalidade na Mitologia Grega: Sísifo (José Jackson Coelho Sampaio)


Sinto que tenho ido a funerais, nos últimos anos, mais do que poderia. Sinto que tenho discutido sobre a morte e o morrer, mais do que gostaria, com os colegas que estudam Tanatologia e com os que pesquisam a ocorrência do homicídio ou do suicídio. Então, quando o cenho franze, as comissuras labiais se aprofundam e o olhar, além de seco, fica muito vago, reaparece um velho escape: a fantasia. 


Mas, nos labirintos da mente, a memória de mortos queridos surpreende, nos aparentemente fugazes lampejos da poesia expressam-se os balanços existenciais com seus deves e seus haveres, e a Mitologia Grega, bem, esta castiga aos que almejam a imortalidade. E seguindo estes passos tortuosos da fantasia, sem metas e sem garantias, percorri as estórias seguintes.


SÍSIFO
Na transição entre os deuses e os humanos surgem os Titãs, e um deles, Prometeu, adota o crescimento e a libertação dos humanos como sua missão. Além disso, dele descendem inúmeras linhagens de mortais, como a de Sísifo, filho de Éolo, por sua vez filho de Heleno, nascido de Deucalião, primogênito de Prometeu.
            Um Titã não era imortal, mas Prometeu, depois de todas as ações de apoio aos humanos e de sofrer extraordinários castigos infligidos por Zeus, obteve, do cansado e contemplativo Centauro Quíron, o dom da própria imortalidade. Quíron, filosoficamente, abdicou de sua condição de imortal, transferindo-a a Prometeu, também num ato de desafio a Zeus. Dos incêndios de Faetonte e dos dilúvios de Zeus, Deucalião nos salva. Heleno foi a matriz de todos os gregos. Com o mundo apaziguado e os humanos adubando as sementes da civilização, Éolo reinou, com sabedoria, por muitos e muitos anos, na Tessália, mas ele gerou reis trágicos, vagantes como os ventos e condenados a perecer nas mãos de seus sucessores.  Entre seus filhos, nasce Sísifo, com suas espertezas, seus dribles na morte e seu posterior castigo, burocraticamente repetitivo, tedioso e banal.
            Sísifo não recebeu o dom da imortalidade de qualquer amigo imortal que dela tenha abdicado, como foi o caso de Prometeu. Sísifo não ganhou a imortalidade de presente de um deus, em nome do amor e do prazer correspondido, como acontecerá com seu sobrinho Endimião. Sísifo também não ganhou a imortalidade como presente de um deus satisfeito com maravilhosos serviços prestados, no caso exemplar da Sibila de Cumas. Sísifo trapaceou com o Hades alguns anos a mais de vida: esperteza de curto prazo a ser purgada pela eternidade.
            Sísifo, filho de Tântalo, fundou a cidade de Corinto, no istmo do Peloponeso, a falsa ilha de Pélops, e ali cultivou o vasto território da esperteza, enfrentando e ganhando de deuses e de filho de deuses. Certa feita, ele venceu as artimanhas de Autólico, filho do deus Hermes, que mudava a cor do gado que roubava para não serem reconhecidos pelos proprietários. Sísifo marcou os cascos de suas reses e assim conseguiu identificá-las e recuperá-las.
            Ousando desafiar a condição humana, naquilo que nos faz fundamentalmente diferentes dos deuses, Sísifo encurralou com malícias e aprisionou por muito tempo o próprio senhor do mundo ínfero, do mundo dos mortos, o deus Hades. E por todo este tempo nenhum ser humano morreu, até que Zeus descobriu o que houvera e instruiu o deus Ares a libertar Hades que, vingativo, mata Sísifo. Mas nosso herói, no momento da morte, recomenda à sua esposa Mérope que se esqueça dele, isto é, que esqueça de prestar-lhe os devidos funerais e deixe seu corpo insepulto. Com o argumento de ser necessário e imperioso punir a esposa por tal desfeita, tamanho ultraje, Sísifo, queixando-se amargamente, consegue de Hades a autorização para re-viver, por apenas o mínimo tempo necessário à exemplação de Mérope.
            Percebendo-se vivo, Sísifo celebra com a esposa a esperteza dos dois e não volta para Hades. Driblador da morte, ele vai permanecendo entre os vivos, refém das delícias e dos achaques da vida, até o inevitável declínio da velhice sonolenta, na fronteira da demência e da inutilidade. Hades recebe o velho Sísifo com absoluta frieza, nada move seus músculos divinos, nada trai seus desígnios divinos. Uma tarefa estava reservada ao velho driblador, ao arqui-manhoso: rolar uma pedra redonda e pesada até ao alto de uma montanha íngreme, do topo da qual sempre cai, e então rolá-la novamente morro acima... outra vez.... mais outra vez... sem variar o ritmo... moto perpétuo.
            Hermes não puniu Sísifo pela vitória sobre Autólico: deve ter soltado boas gargalhadas no Olimpo. Mas, pela pequeníssima vitória sobre a morte, que terror lhe foi imputado, sem drama, a frio, esforço vazio, rolar uma pedra pela eternidade. Nos nossos dias, invertemos o jogo: o castigo de Sísifo não vem depois da morte, na constante dinâmica de Deus ou do Diabo ou na perfeita pureza do Nada, mas, sim, durante a vida, nas condições da alienação universalizada e sutil, pois é no cotidiano do trabalho e de suas ausências que a pedra, sem musgo, rola sobre nossos músculos.

(continuará em próxima postagem)

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