Fronteiras da Solidão (Julius Galeno)


Um conto sobre a Morte:
- I -
Estranha sensação invadia o corpo de Vilberto ao cruzar a fronteira entre o Rio Grande do Norte e a Paraíba. Inexplicável sentimento, misto de segurança, euforia, otimismo e porque não dizer encontro, de tal forma tão exacerbado que acreditava, em seu mais profundo silêncio, ser criado e legitimado pela alma. Sim , nesta hora Deus se revelava mais forte do que nunca, Deus estava nele e ele em Deus. Ao avançar pela estrada em seu fusca do ano, conquistado com tanto sacrifício, admirava a paisagem verde dos canaviais ao som de ¨Há Tempos¨, ¨Yesterday¨, ¨time¨, ¨Roda Viva¨. Sentia-se jovem no vigor de seus vinte e seis anos e jovial no vigor de sua certeza. Valia a pena estar vivo, existir naquele tempo, lugar, mundo, naquele corpo. O cheiro da terra, do mato e até mesmo o aziumado odor das usinas chegavam-lhe doces, levando-o a respirar compassadamente, concentrando-se em cada momento de inspiração e expiração – bendita dialética que mantém a vida. Vez por outra alguém sinalizava pedindo carona, gente cansada, surrada, moribunda, mas ele não podia interromper aquele momento mágico, que era dele, somente dele. Colocava-se frente a si mesmo sem remorsos, afinal, a viagem de Natal a João Pessoa durava apenas duas horas e três latas de cerveja, compradas na eqüidistância geográfica de São José do Mipibú , Goianinha e Mamanguape. Era o suficiente, não queria perder seu equilíbrio emocional, sua estética racional. Na velocidade cansada de seu bólido, buscava prolongar sua estesia, recusando-se a pensar nas misérias que insistiam em atazanar-lhe. Considerava também a reduzida freqüência de tão essencial acontecimento íntimo, pois desde que começara a trabalhar como enfermeiro do hospital de pronto socorro de Natal, era obrigado a viajar todas as segundas-feiras, no germinar do dia e voltar às sextas-feiras, no avelhantar da semana. Era uma sexta-feira. Inevitável pensamento teimava em provocar as lembranças de sua origem. Filho legítimo da condição urbana , nasceu e foi criado numa grande metrópole sulina. Como entender apego tão forte a uma pequena e provinciana cidade nordestina depois de conhecer e viver tantas vidas e concretos de sua identidade pátria? Procurava em seu âmago explicação lógica por ter deixado a companheira e o casal de filhos nesta cidade sedutora, arrebatadora e tão desconhecida do mundo; não mudou residência. Definitivamente, João Pessoa era sua morada. A excitação d´alma crescia à medida que se aproximava do platô de Mamanguape, cognome mais adequado para a pintura de território que circundava o lugarejo que lhe emprestava o nome. Cumprimentou a torre telefônica – princesa imponente em seu reino. Acenou para os patrulheiros rodoviários, que indolentemente reconheciam nele o cotidiano de seu trabalho, de suas vidas.
- II -
Depois de renovar suas forças na terceira estação do caminho, já revigorado em sua energia alcoólica, atravessou os torpes barracos circundantes, devorando ansiosamente o asfalto que se alimentava de sua fome. A agonia se justificava, logo mais estaria avistando João Pessoa, visão indescritível, emoção invasora, alegria dominadora. Ao afagar o horizonte querido, lembrou do colorido pôr-do-sol contemplado do ¨Bistrô¨, em meio ao contraste do antigo com o novo. A igreja das Neves e o prédio do INSS. A casa da pólvora e a fábrica de cimento. As pedras da ladeira Borborema e o asfalto do viaduto. Neste dia avistou, na cegueira da noite, um clarão ao longe, pras bandas do sertão e transportou seu espírito para o instante em que vislumbrava o seu próprio olhar no sentido oposto, em meio às queimadas, a caminho do repouso merecido do lar. Aumentou o som, acelerou mais forte e na frente de um caminhão desviou da morte, que lhe cobrou caro a sorte. Acordou com vozes desconhecidas, em local ignorado. Não conseguia ver, sentir, chorar ou gritar, nem sequer gemer, porém encontrava-se misteriosamente tranqüilo, sereno, senhor de si. Ouviu a voz da companheira perguntando quanto tempo duraria o coma. Percebeu os soluços inaudíveis dos filhos, mesmo assim, continuou imperturbável, numa paz profunda nunca antes experimentada, apagou. Ao acordar novamente, indagou a si mesmo se tudo aquilo não passava de um sonho, visto que nada sentia ou desejava, nada lhe perturbava ou agredia. Parecia flutuar no vazio. Seu pensamento era a única força dinâmica em seu espírito e já lhe bastava. Algumas palavras faladas por pessoas estranhas soavam-lhe familiares, fornecendo certo indício e compreensão de seu estado. Mandavam desobstruir o tubo endotraqueal, avaliar a midríase bilateral e o movimento ocular, testar a função motora, providenciar tomografia computadorizada, monitorar a pressão intracraniana, registrar potencial evocado, solicitar gasometria, dosagem de eletrólitos e tantas outras coisas que fazia no seu dia a dia. Sabia onde e como estava, mas a tudo continuava indiferente, sem esboçar mínima emoção. Talvez até sentisse um leve prazer, porém, sua capacidade de sentir desaparecera. Recordou mais uma vez sua infância, feliz em meio às dificuldades de uma família proletária, no subúrbio envaletado de uma cidade próspera, convivendo desde cedo com a fome, violência e morte – abençoada capacidade de análise infantil.
- III -
A transferência para outras plagas, particularmente o nordeste e o choque cultural, vivido intensamente no início de suas relações sociais, eram marcantes em sua memória. Não imaginava haver em outros lugares condições mais miseráveis que as já conhecidas em seu torrão natal, assim mesmo teve rápida adaptação e continuou em frente – abençoada capacidade de inquietação juvenil. Casou muito cedo, mas não se arrependeu. Não sabia se tinha amor ou necessidade, o importante era o referencial de abrigo que sua circunstância exigia. Vieram dois filhos, nascidos com o despertar de sua maturidade. Era um bom pai, mas tinha maior aproximação com a menina. Ao refletir sobre sua vida, não conseguia definir se tinha sido feliz ou não. Inevitavelmente avaliou a razão de sua existência e questionou se o pouco contato que teve com o Deus segundo os homens não teria alterado o seu destino. Não importa, pensava agora que o existir talvez não fosse real numa perspectiva determinista que se quer estabelecer. Evocou à sua mente as palavras de Antero de Quental em seu Sonetos: ¨Que sempre o mal pior/ é ter nascido¨. Acreditava que o único sentimento, realmente importante, era aquele sentido quando retornava à sua morada, tantas vezes experimentado e vivido naqueles momentos de agradável solidão. Não tinha idéia de quanto tempo permanecera neste estado e de quantas vezes tinha acordado e apagado. Certa ocasião ouviu alguém perguntar a outra pessoa se ele não estaria vendo, ouvindo ou sentindo alguma coisa. Ele mesmo em seu trabalho, frente a pacientes comatosos, já tinha se interrogado a respeito. A rotina impedia a resposta. Neste dia, uma movimentação diferente ocorreu à sua volta. Gritos, correrias e ordens se confundiam em torno do seu leito. Ouviu alguém avisar que iria usar o cardioversor, enquanto outro dizia estar aplicando adrenalina. A tudo isso, Vilberto continuava impassivo, inerte, flutuando. Lentamente, pela primeira vez, desde que ali dera entrada, começou a sentir algo. Percebeu, de imediato, que era a mesma sensação de invasão sentida ao cruzar a fronteira entre o Rio Grande do Norte e a Paraíba. Que a terra lhe seja leve.

3 comentários:

Editores disse...

julis galeno é um grande comentarista , escreve cirurgicamente como quem desce na escuridão do mar a procura de netuno. Aqui mais parece uma cronica real. julius recorta palavras retocando-as com sentimento único de um prosador latino.

Herculano Sabino

Marco Antônio Abreu Florentino disse...

A origem deste conto se deu há mais de 15 anos, quando eu, Ayala e Marcos Jácome fazíamos a graduação em filosofia na UFPB e éramos considerados o terror dos professores medíocres, visto que procurávamos nos matricular juntos nas disciplinas e questionávamos de forma contundente os temas e colocações filosóficas desses mesmos professores. Acontece que surgiu num determinado ¨SEBO¨ famoso de João Pessoa, um concurso literário para falar sobre a cidade e seu contexto histórico. Ayala, que na época nem pensava nas questões relacionadas à morte, me incentivou a concorrer, e assim o fiz. Resultado: ganhei entre os dez primeiros colocados, com direito à publicação e o despertar deste grande filósofo potiguar, sobre tema tão instigante e recheado de reservas no nosso meio social. Agora, agradeço em público ao querido amigo Beto Ayala, minha inserção no mundo das letras, no qual achava ser impossível penetrá-lo (sem nenhuma conotação erótica).
Saudações tanatológicas
Marco Antônio

Marco Antônio Abreu Florentino disse...

CURIODIDADES
à época do conto, Ayala = Wildoberto (Vilberto?) tinha 26 anos, Marcos Jácome era casado com um casal de filhos e com maior apego à menina e Marco Antônio. oriundo de Curitiba/PR, já se encontrava adaptado aos costumes e vida nordestina.