Buscando uma Nova Arte de Morrer (Erasmo Ruiz)

De tempos em tempos somos atingidos pelas crises. Elas assumem os mais variados matizes. Podem ser crises de valor, quando a moralidade e a ética desandam em sua necessária harmonia. Podem ser crises econômicas, que atingem o orçamento doméstico e nacional obrigando a sociedade a buscar formas de sobrevivência que tornam supérfluo o que antes era necessidade absoluta. Existem as crises de desenvolvimento humano - extensivamente descritas pela Psicologia - momentos chave da vida quando nos deparamos com o descompasso entre aquilo que conhecemos (ou pensamos conhecer) com aquilo que o mundo e nossos organismos sinalizam como necessidade adaptativa.Durante séculos os homens vivenciaram crises de saber. Por mais que o conhecimento científico avance, ele sempre esbarra em parcelas da realidade que resistem em se submeter ao entendimento, refratárias ao desenvolvimento das formas de análise e aos instrumentos de coleta que dispomos até o momento. É por não conseguir prever com objetividade como será nosso dia de amanhã que o homem inventa a magia do horóscopo e do tarô. Mas não queremos saber apenas como será o amanhã, o ano que vêm ou sobre a próxima década. Queremos transpor os umbrais do maior dos mistérios, queremos saber o que é a morte e se, de fato, existe algo além dela como nos prometeu tantas e tantas teologias. A ciência, pelos seus indícios, parece sempre afirmar a impossibilidade de uma vida consciente na ausência do cérebro. A maioria de nós é um tanto refratário a essa idéia. Não parece ser fácil ao nosso psiquismo a convivência com a idéia da finitude absoluta. Ainda assim, durante anos, essa convivência foi construída a partir de uma “Ars Moriendi” atrelada a idéia do porvir que, de certa forma, reproduzia um mundo ideal, aquele mundo que todos sempre desejaram nessa vida terrena. O exilamento gradativo da experiência da morte roubou nossa possibilidade de aprendermos uma arte de morrer e todo um conjunto de instâncias significadoras da experiência sobre a morte e o morrer. Se antes a religião parecia ser o núcleo produtor de todas as verdades tanáticas, a gradual secularização da sociedade e de seus espaços públicos parece ter produzido uma terra de ninguém onde miríade de instâncias assume agora seu papel no modo de produção das verdades sobre a morte. Nessa terra de ninguém os indivíduos estão perdidos acabando por aprenderem a única relação possível com a morte na ausência de uma forma mais ou menos padronizada de se lidar com ela. O medo irracional e todas as estratégias de afastamento que caminham lado a lado com ele são as formas como os homens aprendem a lidar com a morte. A “crise do saber” em relação a morte leva, por decorrência, a uma das crises do viver. Perdemos inúmeras possibilidades de termos uma vida intensa e potencialmente feliz na medida em que negamos a busca do saber sobre a morte. Não quero propor aqui nenhum caminho. Eu mesmo estou a caça do meu. Entretanto, a simples estratégia de se buscar algo implica necessariamente em ter a morte como uma das questões do dia para que o dia possa ser vivido com intensidade na medida em que, cedo ou tarde, qualquer dia poderá ser o último dia. O tédio do viver parece ser filho do afastamento da morte como questão da existência. Se antes o moribundo presidia seu desenlace e, portanto, era o dono de suas ações, senhor das últimas vontades, hoje os homens acham-se presos no cárcere de uma conspiração sórdida onde a farsa da vida na ausência da morte encena seu último ato. A crise do saber sobre a morte transforma-se agora na crise de saber sobre a própria vida. A maioria das pessoas parece caminhar em direção a morte sem saber do seu real destino, sem ter em suas próprias mãos as prerrogativas sobre o que fazer com que lhes resta de vida. Note-se que essa parece ser a questão fundamental da existência na medida em que somos seres para a morte. A perda dessa consciência, entretanto, nos torna artificialmente em seres que sistematicamente negam a morte. Se a vida foi vivida sem uma real clareza de sua finitude, ela não pode ser experienciada em sua real magnitude. Algo como ter que dirigir um automóvel possante sem nunca ter sentido o prazer da velocidade. Ao negarmos a finitude, significa então dizer que continuaremos a negá-la no limiar da experiência da morte. Talvez isso explique a solidão relatada por muitos pacientes fora de possibilidades terapêuticas nas enfermarias espalhadas pelo mundo. Da mesma forma, é a negação da morte que alimenta a obstinação terapêutica de profissionais de saúde que se disfarçam em soldados que militam contra a morte e, ao assim faze-lo, implementam dores e agonias sem fim, produzindo o extremo do sofrimento no fechamento da vida. Até quando continuaremos a enlaçar o não saber sobre a morte com o silêncio sobre a própria morte? Conquistamos nos últimos anos a possibilidade de vivermos muito mais tempo. O real desafio que temos hoje não é descobrir se existe ou não um porvir. Essa questão, todos nós, um dia saberemos. Neste sentido estava certo Epicuro ao afirmar que quando somos a morte não é e quando a morte for não mais seremos. A questão fundamental ao pensarmos na morte é: o que estamos fazendo com o tempo a mais que o conhecimento científico está oferecendo aos homens? Uma resposta a esta questão atrela-se necessariamente a novas práticas que levem os homens a terem na morte não mais uma inimiga e sim como um fato que potencializa nossa capacidade de sermos felizes. Precisamos de uma nova “Ars Moriendi”que alimente a arte de viver plenamente.

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