"Depois da Vida" de Hirokazu Kore-Eda (Ingrid Esslinger)


Quero refletir sobre o filme Depois da Vida (Wandâfuru Raifu – Japão, 1998), de Hirokazu Kore-Eda, o qual assisti em 25/05/09, em um evento promovido pelo Premier Hospital/ Grupo Mais/ Cinemateca Brasileira e Obore com o apoio da Faculdade de Medicina de Itajubá, Academia Nacional de Cuidados Paliativos e Instituto Paliar. O evento faz parte do ciclo de debates intitulado Aprendendo a Viver/Aprendendo a Morrer, que vem acontecendo na Cinemateca de São Paulo. No filme, um grupo de “cineastas” recebe pessoas que recentemente morreram e lhes atribui a tarefa de escolher, num prazo de três dias, uma única cena de suas vidas a qual será registrada como única lembrança. Só depois de feita a escolha e de assistirem à cena criada, as pessoas podem partir para a eternidade. É um filme que nos faz pensar intensamente no significado da vida e da morte. Dentre os pontos que me tocaram a alma está a constatação de que bem viver e bem morrer estão intrinsecamente ligados. A morte parece ser mais aceita para aqueles que puderam dar à vida um significado, enfim aos que viveram! Lembra-te antes que se rompam os fios... Dois personagens, uma velhinha que singelamente recolhe folhas, flores, plantas, recolhe metaforicamente a vida que, ao ser vivida, também se esvai; um idoso, após trabalhar durante 50 anos numa mesma fábrica, parece dizer que passou a vida em branco! Ele tem dificuldade em atribuir um significado para sua existência. Este é um paralelo que podemos fazer e que bem apontou uma das debatedoras do filme, a Dra. Maria Goretti Maciel, entre os Cuidados Paliativos e o movimento da própria vida: dar um sentido para nossas experiências, dentre elas, a experiência final de nossa própria morte, podendo integrá-la e aceitá-la como um último acorde de nossa biografia. Com sutileza e envolvimento, a equipe de “cineastas” funciona como facilitadora da apropriação deste significado para cada um dos personagens. Com a ajuda da referida equipe uma outra personagem substitui sua lembrança inicial da “Disneylândia” por uma lembrança do cheiro de sua mãe, quando estava em seu colo, bem pequenina... A Disneylândia é comparada por outro debatedor, o escritor Marcelino Freire, a algumas medidas fúteis e inúteis que muitas são vezes realizadas pela equipe de saúde, prolongando-se um longo e penoso processo de morte, mais do que vida propriamente dita. Preço que pagamos em nossa cultura ocidental, pela negação da morte! Há que deixar o morto ir! Tarefa fácil? Evidentemente que não, ainda mais quando o moribundo se nega a morrer... Um dos personagens do filme, um jovem de 21 anos, recusa-se a escolher sua cena. Deduz-se que ele não quer ir para a eternidade e, no final do filme, ele é tido pela equipe de “cineastas”, como difícil, pois nega sua própria fragilidade e finitude. Tanto a equipe de cineastas do filme, quanto os profissionais de saúde, notadamente os que trabalham com Cuidados Paliativos precisam rever o significado de sua vida e de sua morte, para, num processo de identificação com a experiência pela qual o paciente está passando, para com ele ser empático, ter sim um envolvimento, mas ao mesmo tempo, não atribuindo ao paciente, valores, conceitos, preconceitos e mesmo angústias que sejam suas! Portanto, cabe à equipe de saúde rever seus lutos. Aliás, de que é feita a vida, senão de grandes e pequenas partidas, despedidas, chegadas? A hora do encontro é também despedida, a plataforma desta estação é a vida, é a vida deste meu lugar, é a vida. A chegada e a partida, o pleno e o vazio foram belissimamente retratos no filme, por meio da imagem de um banco ora cheio de pessoas, ora vazio. Leitos de hospitais, de hospices, de casa, ora ocupados por um ente querido, ora vazios porque este se foi. Memória e temporalidade: são intensamente contemplados neste filme. Uma das cenas que para mim foram mais tocantes é quando um personagem da equipe de “cineastas” se dá conta de que ele fez parte da cena que alguém escolheu para levar para a eternidade. Portanto, mesmo sem escrever um livro, plantar uma árvore ou ter um filho, talvez seja possível aceitar melhor nossa morte e viver melhor nossa vida, se nos dermos conta de que, provavelmente para alguém fazemos parte de seu momento especial e ficaremos, em sua memória, eternizados. E assim o tempo, este que para a sociedade ocidental se tornou o grande inimigo, possa ser, na realidade, nosso grande aliado. Parabéns à equipe organizadora do evento pela escolha do filme! INGRID ESSLINGER Dra. Em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Psicoterapeuta, membro da Comissão de Bioética do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, Autora dos Livros Adolescência:Vida ou Morte?(Ed. Ática) e De quem é a vida, afinal? (Ed. Casa do Psicólogo).

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