Introdução à Tanatologia para Trabalhadores de Saúde: Primeira Parte (Erasmo Ruiz)

Falar sobre a morte é algo sempre desafiador. Não que o tema esteja afastado da vida de todos. Estamos longe de sermos leigos a respeito da morte, pois a temos como “companheira” desde o momento em que nascemos. Um dia, sem retoques, ela apareceu em nossas vidas nos forçando a buscar sentidos que pudessem explicá-la. Pode ter sido no dia em que perdemos um avô, um amigo na tenra infância, ou então, um animal de estimação, daqueles que era tratado como gente. Para Graciliano Ramos, a dor de ter de matar “Baleia”, a cadelinha de “Vidas Secas”, era exatamente essa. Ela havia deixado de ser um animalzinho e já se transformara em gente. É no contato com a morte do outro que buscamos algum sentido para nossa vida e a nossa morte. É disso que trata a música “Canto Para Minha Morte”, transcrita a seguir, de Raul Seixas: Canto Para Minha Morte Eu sei que determinada rua que eu já passei Não tornará a ouvir o som dos meus passos. Tem uma revista que eu guardo há muitos anos E que nunca mais eu vou abrir. Cada vez que eu me despeço de uma pessoa Pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela ultima vez. A morte, surda, caminha ao meu lado E eu não sei em que esquina ela vai me beijar Com que rosto ela virá? Será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho que fazer? Ou será que ela vai me pegar no meio do copo de uísque Na música que eu deixei para compor amanhã? Será que ela vai esperar eu apagar o cigarro no cinzeiro? Virá antes de eu encontrar a mulher, a mulher que me foi destinada, E que está em algum lugar me esperando Embora eu ainda não a conheça? Vou te encontrar vestida de cetim, Pois em qualquer lugar esperas só por mim E no teu beijo provar o gosto estranho Que eu quero e não desejo ,mas tenho que encontrar Vem, mas demore a chegar. Eu te detesto e amo morte, morte, morte Que talvez seja o segredo desta vida Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida Qual será a forma da minha morte? Uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida? Existem tantas... um acidente de carro. O coração que se recusa a bater no próximo minuto A anestesia mal aplicada. A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida O câncer já espalhado e ainda escondido, ou até, quem sabe Um escorregão idiota, num dia de sol, a cabeça no meio-fio... Oh morte, tu que és tão forte, Que matas o gato, o rato e o homem Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar Que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva E que a erva alimente outro homem como eu Porque eu continuarei neste homem Nos meus filhos, na palavra rude Que eu disse para alguém que não gostava E até no uísque que eu não terminei de beber aquela noite... Vou te encontrar vestida de cetim, Pois em qualquer lugar esperas só por mim E no teu beijo provar o gosto estranho que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar Vem, mas demore a chegar. Eu te detesto e amo morte, morte, morte Que talvez seja o segredo desta vida A primeira descoberta a respeito da morte diz respeito ao seu caráter de irreversibilidade. A irreversibilidade sinaliza para os projetos que serão irremediavelmente interrompidos. É este o sentido do desconhecido apontado por Raul Seixas em sua música. Além de irreversível, a morte nos apresenta uma experiência da qual não podemos voltar para contar aos outros. Assim, ela sinaliza a necessidade de nos prepararmos para ela. Por isso, a fantasia de pensar como ela vai acontecer. Note bem que a princípio poderíamos dizer que Raul Seixas está sendo mórbido, de modo especial, obsessivamente preocupado com as possíveis formas que pode morrer. Entretanto, quem de nós não tem essa preocupação? Parece algo que faz parte da nossa condição humana. Somos seres humanos, entre outras características, porque sabemos que um dia iremos morrer. Talvez venha daí a necessidade que sempre tivemos de dar uma face minimamente humana à morte quando a idealizamos como um homem acobertado por um manto e capuz, por exemplo. É isso que Raul faz ao imaginar a morte como uma mulher, recurso muito utilizado pela arte. Na música, ela aparece vestida de cetim, alguém que queremos beijar, mas, ao mesmo tempo, queremos nos afastar. O ritmo da melodia da música é o compasso de um tango. Bela metáfora! O tango é uma dança muito sedutora e repleta de ambigüidades, ora agressiva, ora carinhosa. Não estaríamos dançando, sensualmente, com a morte, o tempo todo? É o que nos sinaliza a história. Todas as religiões sempre tiveram preocupação em explicar a morte. Antes delas, o Homem de Neanderthal, há mais de 100.000 anos, enterrava seus mortos com suas lanças e flechas, numa clara evidência que já imaginavam um porvir. E as pirâmides? Não são imensos túmulos? A morte faz tanto parte de nossas vidas que muitos filósofos definem o homem como um “ser para a morte”. Os poetas captaram isso com toda a sensibilidade. Vejam o que nos diz MarioQuintana: Minha morte nasceu quando eu nasci. Despertou, balbuciou, cresceu comigo... E dançamos de roda ao luar amigo Na pequenina rua em que vivi. Ou então, Vinícius de Moraes, falando sobre o final da vida: Resta esse diálogo cotidiano com a morte esse fascínio pelo momento a vir, quando, emocionada ela virá me abrir a porta como uma velha amante sem saber que é a minha mais nova namorada. Essa é uma verdade que transcende o lirismo da poesia. Nunca conseguimos aceitá-la em toda sua plenitude. Sempre tivemos que lançar mão da religião, dos mitos e da filosofia para retirar da morte seu sentido natural e biológico, dotando-a de sentido humano. O que, afinal, é o que fazemos com todas as coisas, no vir-a-ser importantes para nós. Antigamente essa parecia ser uma tarefa mais fácil. As pessoas tinham a morte em seu cotidiano, ela era vivenciada desde a infância. Os moribundos presidiam sua agonia, ditavam seus últimos desejos: como ocorreriam os ritos funerários, como seria seu túmulo, o que estaria inscrito nele. Os testamentos não eram apenas documentos que repartiam bens. Eram textos de exortação moral, ou seja, a vontade do morto tentava regular a ação dos vivos, havia aquilo que os estudiosos chamavam de ars moriendi, uma arte de morrer. Essa arte era desenvolvida e aprimorada pelas instituições sociais, pela arte, pela literatura, pelas religiões; de tal forma que, diante da impossibilidade de remediar a morte, os homens diante dela sabiam exatamente o que deveriam fazer. Parece que hoje em dia não há mais uma mobilização da vida coletiva em torno dessa questão que estimule a produção de uma arte de morrer, na verdade, essa questão aparece sempre pelo seu reverso, numa ânsia sem limites que estruture suas forças na produção de uma arte de fugir da morte. Como nos mostra o clássico filme de Bergman – “O Sétimo Selo” - não podemos de fato fugir da morte, ela já está conosco desde sempre. Se antes os homens a enfrentavam, agora nos escondemos pela ilusão dela estar controlada. Se antes existiam complexos processos socializadores que literalmente ensinavam pessoas a morrerem, agora as crianças são poupadas ou enganadas quando querem saber mais a respeito. Cena de "O Sétimo Selo": O jogo de xarez com a morte Ora, se o brinquedo sempre foi útil não só pela sua dimensão naturalmente lúdica como também pelo seu caráter pedagógico e dramático, cabem as perguntas: nossas crianças tiveram carrinhos funerários de brinquedo? Foram reprimidas ao reproduzir ritos funerários quando da perda de animais de estimação? Puderam presenciar parte significativa das vivências de perdas de adultos mais velhos? Assim, discutir sobre a morte não significa adquirir um gosto mórbido pelo viver nem assumir uma perspectiva negativa diante das coisas. Trata-se de resgatar um aspecto da existência que todos teremos de vivenciar e, portanto, devemos nos preparar para tal. Essa visão negativa associada à morte é uma decorrência da nossa incapacidade de falar e de lidar com a morte e o morrer. Poderíamos perguntar se “morte” e “morrer” são a mesma coisa. Quando falamos em morte dizemos respeito a um processo que atinge indiscriminadamente todos os seres vivos. Neste sentido, estamos irmanados a uma bactéria. Ela, enquanto entidade biológica, também irá morrer. Mas a morte enquanto ato de morrer se expressa de forma diferenciada. Podemos pensar numa pessoa muito rica morrendo de desnutrição? Tal evento pode até acontecer, mas em situações limite, como nos casos da anorexia. A morte por desnutrição é fruto da miséria, de sociedades que não conseguem equanimizar o acesso sequer aos seus bens materiais. Da mesma forma, é muito difícil imaginar que uma criança, filha de pessoas ricas, morra de desidratação. Da mesma forma, a tendência de ricos morrerem mais velhos e de doenças crônico-degenerativas, quando comparados aos pobres, é um dado que pode ser obtido nos estudos de Epidemiologia. Todos nós morreremos um dia, mas a forma como morremos diz respeito a classe social, estilo de vida, possibilidades de acesso às coisas que são produzidas, nível educacional etc. (continuará em outro post)

2 comentários:

Marco Antônio Abreu Florentino disse...

O SER PARA A MORTE COMO FUNDAMENTO NA COMPREENSÃO DO PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER
(Fragmentos da dissertação de mestrado em filosofia pela UFC)
- Considerado no seu modo de ser, o homem é precisamente DA-SEIN, ou seja, SER-AÍ. Não é somente aquele ente que propõe a pergunta sobre o sentido do ser, mas é também aquele que não se deixa reduzir à noção de ser aceita pela filosofia ocidental, que identifica o ser com a objetividade, ou seja, com a simples presença.
- O modo de ser do SER-AÍ é a existência, isto é, compreensão prévia do sentido e presença do ser. A experiência é poder ser, mas poder ser quer dizer projetar, por isso, a existência é essencialmente transcendência, identificada por Heidegger como superação, sendo esta sua constituição: o homem é projeto e as coisas do mundo são originalmente utensílios em função do projetar humano.
- Para o existente humano, estar no mundo não é um acidente, mas algo que efetivamente o constitui. Disto decorrem a FACTICIDADE, que consiste no fato do homem estar no mundo sem que sua vontade tenha disto participado; a EXISTENCIALIDADE e a RUINA, que significa o desvio de cada indivíduo do seu projeto essencial em favor das preocupações cotidianas que o distraem e pertubam, confundindo-o com a massa coletiva, situação em que o eu individual seria sacrificado ao persistente e opressivo eles, reduzindo sua vida à vida com os outros e para os outros, alienando-o da principal tarefa que seria o tornar-se si mesmo - caracterizando a forma de existência inautêntica.
- Em suma, a vida cotidiana faz do homem um ser preguiçoso e cansado de si próprio, que acovardado diante das pressões sociais, acaba preferindo vegetar na banalidade e no anonimato, pensando e vivendo por meio de idéias e sentimentos acabados e inalteráveis, como ente exilado de si mesmo e do ser.
- A situação total que Heidegger designa ser no mundo pode ser entendida como CUIDADO. Este, por sua vez, manifesta uma forma especificamente temporal e é com base nesta temporalidade do CUIDADO que se pode fazer a distinção de dois modos diferentes do ser no mundo: autenticidade e inautenticidade.
- A forma específica de temporalidade do homem enquanto cuidado só se revela plenamente na MORTE. Somente na MORTE compreende-se um poder ser total que, entretanto, nunca se realiza.
- No sentido autêntico, a existência caracteriza-se como antecipação da MORTE, aceitando a sua finitude. Para aceitar a finitude deve reiterar seu abandono do mundo, isto é, deve ser o seu passado. A existência só enfrenta o presente sendo o seu futuro e o seu passado, continuando a manter o seu abandono ao mundo e o que faz ao longo do passado mundano, pois neste contexto, o passado é projeção, o presente é facticidade e o futuro é antecipação.
- O homem pode existir seja escolhendo uma possibilidade, seja escolhendo outra, entretanto, entre as várias possibilidades, há uma diferente das outras à qual o homem não pode escapar: trata-se da MORTE. Com efeito, o homem não pode deixar de MORRER e então, quando a MORTE torna-se realidade, não há mais existência. Isso nos faz entender que, enquanto há o existente, a MORTE é possibilidade permanente e esta é a possibilidade de que todas as outras possibilidades tornem-se impossíveis.
- Na perspectiva da MORTE, todas as situações singulares aparecem como possibilidades que podem se tornar impossíveis. Desse modo, a MORTE impede que alguém se fixe em uma situação, mostra a nulidade de todo projeto e alicerça a historicidade da existência.
- A existência autêntica, portanto, é um SER PARA A MORTE. Somente compreendendo a possibilidade da MORTE como possibilidade da existência e somente assumindo essa possibilidade como decisão antecipada é que o homem encontra o seu ser autêntico e a compreensão de seu sentido.

Marco Antônio Abreu Florentino

Marco Antônio Abreu Florentino disse...

ERRATA: No primeiro fragmento, onde se lê... ¨mas é também aquele que não se deixa reduzir à noção de ser aceita pela filosofia ocidental...¨ LEIA-SE: ¨...mas é também aquele que não se deixa reduzir à noção DO ser, aceita pela filosofia ocedental...¨