Introdução à Tanatologia para Trabalhadores de Saúde: Última Parte (Erasmo Ruiz)

Assim, o cuidado deve acompanhar os dois extremos da vida. Da mesma forma que nos sentimos motivados a cuidar de um bebê, devemos nos motivar a oferecer todo o conforto material e espiritual que alguém precisa frente à experiência da própria morte para que, um dia, outra pessoa tenha mesma motivação para cuidar de cada um de nós. É injusto e eticamente condenável que no final da vida muitas pessoas se sintam abandonadas e solitárias ao enfrentar a própria morte. Para tal empreitada temos de pensar na morte, pois essa é uma das maneiras de se perceber a vida como um bem precioso, onde os momentos vistos como banais adquirem na verdade sua real magnitude. Para finalizar, é óbvio dizer que ninguém que esteja lendo este texto gostaria de morrer sozinho. Uma maneira de refletirmos sobre a forma como estamos atendendo os nossos clientes fora de possibilidades terapêuticas é pensar que, se estivéssemos do outro lado, gostaríamos do modo de atendimento e se não existiriam outras maneiras mais acolhedoras, afetivas, respeitosas de atenção. Para atendermos pessoas que estejam morrendo temos de refletir sobre a própria mortalidade o que, a princípio pode ser algo doloroso, mas, de fato, é um processo existencial que nos leva a viver melhor na medida em que questionamos os rumos que nossa vida tem levado. Estar ao lado do paciente pode escancarar medos e angustias que precisam ser compreendidos com cuidado, pois o virtual sofrimento diante da morte enfrentado pelo paciente fará o profissional pensar: “e se fosse eu ou algum ser querido?”. Nestes momentos é importante que você possa ter alguém para conversar. Não é vergonhoso se sentir triste e cheio de dúvidas. Quando você menos perceber, irá notar que seu medo na verdade é o medo de todo mundo. É essa compreensão que permitirá você cuidar melhor do outro, seja em sua morte-termo final, seja em sua morte-cotidiana, na medida em que, em parte a dor dele é também a sua dor, algo inerente ao fato de todos sermos humanos. Nessa hora a morte deixa de ser apenas um fenômeno biológico e passa a ser um fenômeno biográfico, pois envolve sempre a vida de alguém dotado de medos, anseios, dúvidas e conflitos. Pensar na morte, então, nos fará refletir sobre a vida não mais como um conjunto de sinais vitais que devemos monitorar, mas como um instrumento que nos permita sempre apreciar as belezas do mundo. Neste sentido, muitas vezes as pessoas estão “mortas” mesmo que sejam preservados seus sinais vitais, pois a vida já se foi há muito tempo embaçado pela dor, pelo sofrimento e pela inconsciência. Compreender nossos limites frente ao atuar sobre o paciente não é assumir que somos incapazes ou incompetentes. Não podemos deixar que a vaidade tome conta do nosso lidar com a vida dos outros. Tomar consciência dos limites é, antes de tudo, trabalhar pela vida e não pela morte. Precisamos construir uma nova visão da morte que não a perceba mais como inimiga da vida, mas sim como seu complemento. Vida e morte formam uma totalidade e Erich Fromm já nos lembrava de que somos os únicos seres portadores, por vivos, de um poderoso instinto de sobrevivência e, por auto-conscientes, sabedores da inelutabilidade da morte. Durante muito tempo o homem se viu diante da amargura frente à morte como bem ilustra Clarice Lispector ao afirmar que “É uma infâmia nascer para morrer não se sabe quando nem onde”, ou Machado de Assis ao falar “do legado aos vermes”. Outras vezes, estamos diante do absurdo de sua possibilidade que, repentina, se realiza como dizia Goethe: “a morte é uma impossibilidade que, de repente, se torna realidade”. Outras tantas, a morte nos força a buscar o porvir como nos avisa Quintana em seu poema intitulado “Inscrição para um Portão de Cemitério”: Na mesma pedra se encontram, Conforme o povo traduz, Quando se nasce - uma estrela Quando se morre – uma cruz. Mas quantos que aqui repousam Hão de emendar-nos assim: “Ponham-me a cruz no princípio... E a luz da estrela no fim!” Temos de continuar essa busca. Neste sentido, a morte é uma grande professora que diante de seu mais absoluto mistério nos seduz à busca de soluções. Independente de onde esteja a verdade, se é que ela está em algum lugar, cabe nesse instante resgatar acordos provisórios. Nós, enquanto trabalhadores de saúde, não podemos nos esconder da necessidade dessa busca, sob pena de condenarmos aqueles que estão morrendo a um suplício maior do que a própria morte. Este suplício é o abandono frente à situação mais atrativa e mais amedrontadora que encontramos nessa vida: a morte. Atrativa porque nossa curiosidade nos impele a buscar a grande descoberta sintetizada na pergunta: “existe alguma coisa do outro lado?”. Amedrontadora porque, existindo algo ou não, sempre tememos o que não conhecemos e sabemos que o conhecido estará perdido, em bruma, em dês-memória, como no “Diálogo dos Mortos”, de Luciano de Samósata. Pode parecer estranho, mas talvez sintamos um pouco de inveja daqueles que partem antes de nós, pois eles estarão produzindo a solução desse mistério. Quando o momento chegar, é bom ter alguém do lado que segure nossa mão ou nos ajude a recitar alguma oração. Fugir nessa hora, é fugir da nossa própria humanidade. Fugir da morte do outro é fugir da própria vida! Sugestões de Leitura Sobre o Tema: vide livros referenciados em nosso blog

Este texto foi publicado em CARNEIRO, C., RUIZ. E.M., LANDIM, L.P. e SAMPAIO, J.J.C. (ORGs) Acolher Cidadão: Estratégia de aperfeiçoamento do SUS em Quixadá, Ceará. Fortaleza: EDUECE, 2006

FAVOR: AO CITAR REFERIR A FONTE

2 comentários:

Marco Antônio Abreu Florentino disse...

Caro Erasmo
Parabéns pelo texto na sua completude, visto tratar, de forma aberta e transparente, um assunto extremamente delicado, mormente aos profissionais e trabalhadores da área de saúde.
Em relação aos médicos, nos meus vinte e cinco anos de profissão, mais os seis da formação em medicina, quando nos defrontamos com a morte logo nas primeiras aulas de anatomia, percebia nos colegas um comportamento dual que viria a se prolongar pelo resto das suas vidas e carreiras: alguns denotavam uma certa repugnância, evitando ao máximo uma maior aproximação com as peças anatômicas ou o prolongamento de seus estudos práticos com elas, muitas vezes expressando algum comentário, religioso, filosófico ou de cunho social, a respeito da suposta pessoa que ali se encontrava em forma de cadáver. Outros, na sua grande maioria, talvez pela situação de entusiasmo em ter galgado sucesso num curso tão concorrido e valorizado pela sociedade, encarava de forma indiferente, tratando como se fosse um material qualquer de estudos, muitas vezes até assumindo um comportamento jocoso e desrespeitoso, como em inúmeras histórias que conhecemos, tipo as de estudantes que simulam jogo de bola com crânios ou colocação de partes anatômicas, como o pênis, nas bolsas das colegas.
Então... tal comportamento dual continua persistindo, significativamete, nas relações dos médicos com a morte e o morrer, consubstanciadas através de pacientes graves, em estado terminal ou não. Claro que a natureza da relação mudou no seu modo de expressão. Agora os médicos assumem as seguintes posturas: ou continuam indiferentes à situação em sí, dessa vez tratando como se fosse um acontecimento corriqueiro de trabalho, digamos um acidente, o que pode levar a uma negligência ou imprudência nos procedimentos protocolares de emergência ou assumem uma postura de inconformação e pesar, às vezes tão intensas, que podem induzir ao prolongamento inadequado desses procedimentos, igualmente prejudiciais ao paciente e ao seu momento de morte.
A análise contida na sua explanação, trás à superfície do entendimento psico-social, algumas das explicações e razões para tais comportamentos, o que nos leva à convicção da necessidade preemente quanto à inserção, nos cursos de medicina, de disciplinas humanisticas que tratem do tema da forma tão esclarecedora, profunda e educativa, como foi nos repassado no texto.
Marco Antônio Abreu Florentino
Médico emergencista

John D. Godinho disse...

Inscription for a Cemetery Gate

On the same headstone you’ll find
the people’s view of gain and loss:
above the date of birth, a star,
above the date of death, a cross.

But many of those who rest here now
would correct us with their final breath:
"There should be a cross above my birth…
“and the light of a star above my death!

Mario Quintana
(Translated by John D. Godinho)
in The Color of the Invisible