Percepções da Morte a Partir de Algumas Pinturas (Erasmo Ruiz)

A arte pode portar inúmeros valores. Serve para nossa fruição estética, alguns dizem que faz bem a a alma, outros ganham dinheiro com ela vendendo e revendendo pinturas de grandes mestres ou daqueles que ainda buscam um lugar ao sol. Revolucionários querem usa-la deliberadamente para produzir a tal consciência política. Outros a massificam sob a égide da indústria cultural. É fácil encontrar um Dali ou um Monet estampado numa camiseta ou então materializados num singelo imã de geladeira. Mas a arte pode expressar todo um sentido que uma época constituiu para esse ou aquele aspecto ideológico. Digamos que cada escultura, poema ou quadro são portadores de representações que podem oferecer as chaves para o entendimento de toda uma época, o que determiandos homens oriundos de grupos sociais específicos pensavam a respeito dos papéis de gênero, religião, e, naquilo que nos interessa mais de perto, o que os homens poderiam pensar a respeito da morte. Por exemplo, o quadro ao lado ("Le jour des morts" por Bouguereau, 1859) captura um momento de intensa dor. Duas mulheres, provavelmente mãe e filha, choram a perda inconsolável construída pela morte que nos escancara seu aspecto mais cruel: seu caráter de irreversibilidade. Quase todos poderiam se irmanar com a dor capturada pelo artista e, neste sentido, ele parece captar algo "atemporal", que se sentia em 1859 e que se continua sentindo hoje. No entanto, os personagens nos transmitem características datadas. A que mais salta os olhos são as vestes, aspectos de um ritual mais complexo e estruturado de como devíamos nos comportar frente a perda pois ela não era só algo restrita ao indivíduo mas se refletia por todo o corpo social. Assim, a dor privada era ao mesmo tempo também coletiva. Era educado e polido sinalizar ao mundo a dor e, por conta disso, as pessoas eram consoladas, mesmo por aqueles considerados desconhecidos. Dessa forma, o quadro pode nos dizer não só a respeito da perda da morte e sua dor mais pungente. Sinaliza também atitudes rituais, normas, valores e costumes diante bda morte vividos pela sociedade francesa daquele período mesclado pela percepção individual/histórica que Bouguerau tinha do mundo em que vivia.
No passado o homem se achava relativamente preparado para o enfrentamento da questão da morte. Uma síntese complexa de concepções de mundo religiosas e do folclore criavam um esteio simbólico onde todos caminhavam em direção ao desfecho sendo socializados com valores e condutas a seguir. Hoje, com o fim das explicações gerais sobre a morte, ela deixou de ser um terreno exclusivo da religião transformando-se em mais um dos objetos da ciência. A ciência mesma é a grande fonte de nossas dúvidas e certezas, é ela que garante possibilidades de vida maior e mais segura. O problema é que ela não debelou aquilo que é considerado o mal maior: a morte. Ah, a ciência! Aumentou nossa média de vida, mas roubou nossa certeza da eternidade. Ora, é a ciência com seu complexo quadro de saberes que afirma a finitude como absoluta, pois não consegue encontrar referências plausíveis da vida fora da matéria. Ao mesmo tempo, tenta nos instrumentalizar contra a morte a partir da noção de microorganismo, dos procedimentos higiênicos, das práticas de anestesia que revolucionaram a cirurgia, da farmacologia e seu arsenal cada vez mais eficiente de drogas miraculosas. Todo esse conhecimento criou a ilusão de que a morte pode ser detida indefinidamente, gerando aquilo que muitos estudiosos chamam de “fantasia de onipotência” dos profissionais de saúde. Essa onipotência é destruída diante da morte pois os saberes falham na medida que o moribundo sinaliza seus limites. Aqui nos defrontamos com um dos motivos do afastamento das pessoas que estão morrendo. Em parte, queremos nos afastar não só porque elas representam a morte, mas também porque elas ferem nossas vaidades ao negarem a eficiência absoluta do saber que utilizamos.
A medicina, na medida em que ampliou suas possibilidades de intervenção, foi deixando de ser contemplativa em relação ao caminhar da doença em direção à morte. Mas essa contemplação não significava a inércia. O olhar do médico se dirigia às possibilidades que ainda restavam, qual seja, de tentar oferecer tudo que podia para mitigar a dor e o sofrimento. O quadro pintado por Samuel Luke Fildes.em 1891 mostra justamente isso. O olhar do médico parece expressar um misto de curiosidade e comiseração. Na casa, a família improvisa uma cama na forma de duas cadeiras. Sobre elas, uma criança que aparenta não ter mais do que 5 anos está nos estertores da agonia. Ao fundo, os pais desolados observam. A mãe inconsolável ainda parece juntar as mãos para uma derradeira súplica a Deus. O pai parece esboçar ainda um olhar com um mínimo de esperança enquanto ensaia amparar a esposa pousando uma das mãos em seu ombro. O sentimento geral que o quadro parece transmitir é o da impotência diante da morte. Resta aguardar a marcha inexorável dos acontecimentos. Entretanto, junto do olhar do médico contemplativo, parece existir um semblante questionador. O que poderá ser feito quando outra criança estiver nas mesmas condições? Poderá um dia a medicina oferecer alguma resposta frente a toda essa mortandade que ceifa flores tão tenras?
Alguns anos se passaram depois dessa pintura. Acontecem guerras de redobrado aspecto destrutivo, com novas armas como as metralhadoras, fuzis de repetição e, posteriormente, o uso de gazes letais e da força aérea, produzindo alto número de mortos e feridos. Os hospitais de campanha oferecem todo o campo de atuação para a revolução da prática médica, notadamente da cirurgia. Estamos diante de uma medicina que aprendeu muito com as noções de microorganismo e assepsia, que desenvolveu técnicas cirúrgicas antes impensadas a partir da viabilidade do ato cirúrgico com a invenção de anestésicos eficientes e, depois, dos antibióticos que junto às técnicas de esterilização reduziram drasticamente a mortalidade pós-cirúrgica. Essa medicina é guiada pela razão instrumental. Coloca sobre sua tutela os desejos de pacientes e familiares. Redesenha os espaços de cura modelando os hospitais com o semblante parecido com os de hoje em dia, tornando-os um espelho que reflete o número crescente de especialidades. Resta muito pouco espaço para o olhar que contempla. Cabe agora atuar com base no conhecimento construído. E, paulatinamente, inúmeras situações que estavam fadadas ao reino da morte, são como que arrancadas de lá e trazidas de volta à vida.
Agora, vamos nos deter em outra manifestação artística. Trata-se da gravura Der Arzt (O médico) de Ivo Saliger, realizada em 1920 (para uma análise mais aprofundada dessa obra vide o trabalho de Ayala Gurgel "Direitos Sociais dos Moribundos", sua tese de doutorado publicada pela EDUFMA, 2008). Nela vemos uma árdua disputa entre o conhecimento médico de um lado e a morte de outro. No centro, uma mulher nua agoniza sendo sustentada pelo braço esquerdo médico. Com o pouco de forças que lhe resta, a mulher enlaça o pescoço do médico, praticamente pendurando-se nele. Abaixo a morte, estilizada na figura do esqueleto, tenta arrancar a mulher do médico que com o olhar resoluto a detém, empurrando-a com a mão direita que lhe comprime o crânio. Essa figura parece representar com muita fidedignidade o conceito que embasa a prática médica que se constitui a partir da eficácia terapêutica. O olhar obstinado do médico mostra alguém que luta contra a morte e, para tal, está disposto a tudo. É essa postura que parece governar grande parte da prática médica, principalmente no momento em que a medicina se instrumentaliza cada vez mais com técnicas que potencializam a eficácia da terapêutica. Ironicamente poderíamos dizer que hoje em dia os pacientes morrem bem equipados porém mal informados. Os novos templos de Esculápio estão materializados nas UTIs, que, apesar de realmente salvarem muitas vidas, acabam que mantendo em suspenso o desenlace de outras tantas. Os novos médicos, imbuídos do espírito de Saliger, acabam produzindo a distanásia, aumentando o tempo de vida que não é mais vida e sim um mar de dores e sofrimentos.
Mas analisar pinturas pode nos trazer alguns problemas. Sempre corremos o risco de projetar no passado os conflitos, medos, anseios e idealizações do presente. Mas o contrário parece ser real também. Ao analisarmos a história podemos traçar uma pseudo padronização e/ou generalizações que projetam o passado no presente caindo nas abstrações da imutabilidade do amor, da ética, do medo ou do poder ,como se essas categoria pudessem prescindir da história e dos homens. Poderíamos tomar a metáfora do que ocorre nos filmes. Por mais perfeita que seja uma direção de arte, volta e meia notamos que os cabelos e roupas "traem" a estética que se intenta remontar levando ao século XVII penteados e modismo cotidianos ou "marquinhas" de biquini que só existem nos corpos de hoje em dia. Por outro lado, a forma de se sentir e expressar o amor em "Romeu e Julieta" permitem dizer que a vivência do erotismo e da paixão são IDÊNTICAS à época de Shakespeare? A questão que queremos ressaltar não é necessariamente que os médicos lidassem melhor com a morte no passado ou que lidassem melhor com aqueles rotulados de pacientes, mas que parecia palpável a existência de uma "Ars Moriendi" mais estruturada e coesa no passado e isso é sinalizado pela própria iconografia, diferente de hoje em dia quando a tarefa de se lidar com a morte parece crescentementeuma ação do indivíduo restrito a si próprio, carente de rituais e normas culturais para tal. No passado, Um conjunto de símbolos e representações explicitava a necessidade de se lidar com a morte e mesmo de se preparar para ela. Vide por exemplo pinturas que tematizam a questão da "Vaidade", dos ciclos vitais etc.
Aqui as imagens não querem nos poupar de nada. Ficavam nas salas dos castelos, nas entradas das igrejas. Elas sinalziam diretamente que o nosso tempo é finito e que a ntes que chegue a morte precisamos nos livrar do "entulho" terreno da vida material. Não adianta o investimento em algo que se perde e se deteriora mas temos sim que "juntar tesouros no céu". É a própria érsonificação da morte na pintura que nos dá o recado, sua futura vinda é mobilizadora de aitutdes aui e agora.
O que parece caracterizar nossa atitude hoje é a DICOTOMIZAÇÃO morte e vida, com uma "anulação" da morte "submersa" no narcisismo da sociedade de consumo e que acaba por mercantilizar quase tudo que existe em seu entorno. Diferente do que ocorria no passado, o elemento que se interpõe entre as forças vitais e tanáticas é agora a figura do médico. Se isso fica evidente e cristalino na gravura de Saliger, já pode ser perebido com advento da modernidade. Neste período, o elemento de negação é aparentemente nova como é nova a postura do médico mais ativa e incisiva. Ora, só é possível essa ação incisiva sobre o "controle" da morte na medida em que exista aquele que se torne o senhor da ação que agora é, de fato, decididamente terapêutica. Diferente das representções das "Danças Macabras" ou de forças vitais e tanáticas em oposição, existe agora a figura do médico que media, atua, decide, manipula, enfim, que regula a relação dos homens frente a morte. Cento e trinta anos antes de Saliger encontramos, por exemplo, Goya, que imortaliza a figura do Dr Arrieta que o "protegeu" da morte. O elemento novo na iconografia é do médico que "nasce" a partir da razão iluminista e que se interpõe entre Goya e a morte não precisando mais, portanto, dos recursos espirituais para este enfrentamento até porque, agora (lembremos uma célebre gravura de Goya), o homem encontra-se "assombrado pela razão". Mas existe uma diferença fundamental quando comparamos o médico de Saliger com o de Goya. Na pintura do artista espanhol, o médico acolhe e se interpõe como que escondendo seu paciente ao mesmo tempo que o protege. De fato, ele não luta contra a morte mas parece escamotear Goya de sua presença. Não se trata portanto de uma negação clara mas sim de uma figuração do médico como alguém que produz um subterfúgio
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Diferente, muito diferente, por exemplo, da visão de Bruegel pouco mais de 200 anos antes ("O Triunfo da Morte"), onde a morte acha-se absolutamente "solta", governando um mundo em que não há mais o que possa ser feito para escapar dela . As grandes epidemias do passado criavam uma estética da fatalidade onde a fuga da morte era algo absolutamente inúltil, em particular numa sociedade que desconhece a associação de hábitos de higiene como uma prática efetivamente sanitária. Junta-se a isso o paradoxo de guerras religiosas cíclicas onde em tese os homens estavam se matando em nome de Deus e temos então uma associação perversa da morte em seu duplo sentido, qual seja, o da morte material com o da morte espiritual. É dessa última morte que o homem parece ter maior medo até o advento da renascença e da modernidade. Hoje, num mundo crivado pela ciência como novo modo de produção de verdades, temos medo da morte em sua expressão mais marcante. Não tememos mais perder a alma posto que sua presença está secundarizada no imaginário. A maioria de nós teme perder a si mesmo com a perda do corpo. Dai, portanto, a importância da figura do médico que não mais nos escamoteia da morte e sim a "enfrenta" diretamente.
O Triunfo da Morte
Assim, as estratégias psicossociais no lidar com a morte parecem ser maiores hoje porque, se antes existiam redes de solidariedade para o enfrentamento coletivo da morte, parece que essa redes desapareceram e/ou ganharam uma conformação em que os indivíduos vão meio que transformando o problema da finitude na perspectiva da individualidade restrita a ela mesma. E os profissionais de saúde, mais notadamente os médicos, embora tenham se tornado competentes em atuarem terapeuticamente sobre as doenças, transpõem esse olhar terapêutico para um momento onde a terapia de nada mais serve. É isso que sinalizamos metaforicamente na figura do médico obstinado em Saliger ou na figura escamoteadora do médico de Goya. É possível encontrar esse olhar interventivo e controlador na iconografia do passado mais distante? Obviamente não pois a figura do médico como conhecemos hoje em dia nasce com a modernidade.
Agora talvez possamos firmar um consenso mínimo entre os saberes consolidados e aqueles que parecem bem distantes, perdidos no passado. Para tal, invoquemos mais uma vez a arte, no caso, o genial Pablo Picasso aos 14 anos de idade. Trata-se do famoso quadro “Ciência e Caridade”. No centro da pintura, uma pessoa agoniza deitada na cama. A sua esquerda, o diligente médico toma-lhe o pulso e consulta o relógio. Esse é o olhar da ciência que nos faz tudo relacionar às medidas e quantidades, visando prever e prover. Mas a direita da mulher existe uma religiosa que assume em termos práticos algo que a moribunda naquele momento não pode mais fazer: ela segura a criança que presumivelmente é sua. A religiosa é portadora de um saber ancestral, que pode até ser visto com inútil frente ao que acontece com o organismo da agonizante mas, ainda assim, ela pode suprir determinadas necessidades que nem todo o saber médico reunido conseguira dar conta naquele instante. Ela é capaz de responder a determinadas perguntas sobre a vida e a morte que, mesmo em sendo falsas as respostas, serão de vital importância para que nesse momento encontre-se alguma paz. Nada, absolutamente nada impede que esses saberes, com o digno acúmulo de suas competências, possam estar lado a lado para constituírem o esteio da dignidade diante da morte e do morrer. Neste sentido, temos que resgatar a autonomia dos pacientes. Cabe a cada um de nós sermos protagonistas mais atuantes da maneira como queremos sair do palco dessa bela peça teatral chamada de existência. E o fim do espetáculo não precisa se configurar necessariamente como tragédia. Provavelmente poderá ser dramático, é verdade, mas terá pitadas de alegria e contentamento, principalmente se tivermos ao nosso lado pessoas que em nenhum aspecto nos deixem sozinhas, seja alguém da família, seja um profissional da saúde. Dessa forma estaremos respondendo em termos práticos que não queremos morrer sozinhos!

4 comentários:

Anônimo disse...

Muiot interessante essa análise com as pinturas. Sempre achei a iconografia muito restrita, presa a um descritivismo sem fim. Você consegue fazer ligações com a vida real e isso é bom. []s

Anônimo disse...

Vc esqueceu de comentar a primeira pintura, que aliás é belíssima. Quem é o pintor?
A minha tosca visão me deixa abstrair que essa imagem mostra a realidade de outra face da morte, qual seja, o sentimento da perda familiar, pode-se observar que as duas imagens se amparam na dor da ausência, e se não me engano, não olham sequer para o túmulo!é a negação da verdade que lhes mostra um futuro sem a parte física do ente querido, sem o toque, sem a voz...um sorriso...
O ritual está sendo cumprido, pois elas colocam coroas de flores na lápide, mas ador é pungente, quase palpável!!! muito expressiva e tocante essa imagem. Bom trabalho.

Anônimo disse...

Senti falta, também, do comentário da primeiera pintura já que as demais forma comentadas. Embora,contraditóriamente penso que a arte platica dispensa comentários. ela fala por si.
Quem sabe ficaria interessante colocar poemas dentro do tema no Blog?

Thanatos disse...

Atendendo aos pedidos, fiz uma modificação no início do texto onde comento a primeira pintura. O objetivo iniciaç era te-la como mera ilustração da abertura do post mas percebi que fazia sentido comenta-la. Diferente do que pensa o último comentarista, acho que a arte imlora por comentários pois nenhuma fruição é vazia de significação. Ao produzirmos qualquer significado teremos intrínseco a essa produção um "comentário", um julgamento, uma apreciação. ERASMO