O Ritual do Último Desejo (Erasmo Ruiz)

Existem muitos aspectos desumanizantes no entorno da experiência da morte e do morrer. Estudos apontam a razão para isso acontecer. Sinteticamente, existe uma inter-relação perversa entre a perda de autonomia que cerca o papel do "estar doente" - que se torna gritante quando o paciente é rotulado como "terminal" ou "fora de possibildiades terapêuticas" - e a crescente medicalização da vida e por decorrência, a transformação da morte de fenômeno vital na mais perversa das patologias. Significa dizer então que, por ser considerada doença, a morte estará cercada de "cuidados" que recorrentemente tentarão afirmar sua negação. É no aprisionamento da morte nos hospitais - cercada por "tratamentos" fúteis que se transformam em tortura "terapêutica" para pacientes, familiares e trabalhadores.- que sistematicamente veremos as necessidades existenciais inerentes a finitude serem cerceadas. Neste sentido, a metáfora da prisão parece ser procedente. O moribundo passa por crescente descaracterização dos seus atributos humanos, políticos, sociais, psicológicos e culturais. Perecisará a partir de sua rotulação como "alguém que vai morrer" de ínterpretes que mediem suas vontades e desejos, mesmo que tenha condições de fazer isso diretamente. Estará encarcerado, suas visitas (quando acontecerem) serão rigidamente controladas, terá uniforme e se transformará em um número. Fiz esse preâmbulo para destacar a importância do ritual dos "últimos desejos", conjunto de ações que funciona como despedida e ao mesmo tempo afirma nossa capacidade de nos mobilizarmos para expressar amor e solidariedade em momentos em que a vulnerabilidade e dependência do moribundo chegaram ao seu limite. Este é um dos aspectos mais terríveis da experiência da morte aprisionada nas instituições hospitalares: a possibilidade cristalina que rituais de fechamento da vida acabem por não se realizar ou sejam vistos como desnecessários diante da perspectiva de negar a morte até a sua constatação objetiva. Mas realizar o último desejo é ainda algo mobilizador, principalmente quando a morte se escancara e se encontra ao lado de uma criança. Nos Estados Unidos, uma garotinha de 10 anos sofria de um raro tipo de câncer vascular e, já nos últimos dias de vida, expressou como último desejo asssitir a animação "Up" produzido pela "PIXAR". O problema era que ela estava tão fraca que não pôde ir ao cinema para assistir ao filme em circuito comercial, e o filme ainda não havia sido lançado em DVD. Os pais da criança então tentaram todas as formas de contato com o estúdio para viabilizarem uma exibição do filme na casa da criança. Depois de muitos contratempos, o estúdio disponibilizou um helicoptero para que o filme fosse levado com alguns brinquedos. A garotinha assitiu ao filme em casa e morreu 7 horas depois. (para ver a notícia completa dessa história clique aqui) Estamos de fato preparados para mobilizarmos todas as nossas energias para realizarmos os últimos desejos das pessoas? Buscar respostas para esta questão é de fundamental importância para produzir gestos humanizadores no entorno da morte. Ao não nos preocuparmos com isso, talvez no momento de vivência da nossa finitude, a equipe de saúde e familiares não prestarão atenção em nossas falas. Estaria então consolidada a idéia de que aqueles que vão morrer devem fazê-lo silenciosamente, bem comportados, pois moribundo não deve ter vontades! É isso o que queremos para nós?

2 comentários:

Anônimo disse...

Caro professor...

Outra abordagem coerente sobre o tema nesse seu artigo; concordo plenamente sobre o fato da des-humanização que ocorre nos hospitais, principalmente quando o paciente ´entra no que codificam de "SPT", ou seja sem possibilidade terapêutica. Ao ser incluido nessa classificação, ele perde totalmente sua condição de "ser", torna-se alvo de ordens médicas e procedimentos de enfermagem, lhe são roubados autonomia, sentimentos, lagrimas e pudores e principalmente de expectativa de vida. Eu falo vida não no sentido real pois ele realmente é um paciente que está no seu limite! mas eu falo de vida no sentido de poder expressar seus desejos ou ao menos ser ouvido ou tocado ou sentido ou mesmo olhado...
Tocante o fato que vc relacionou sobre a criança e seu último desejo, muito reconfortante saber que apesar de sua idade ela teve uma morte digna e que foi respeitada em sua vontade. Recordo-me de outro caso de uma criança que se recusou a receber um novo transplante cardíacon não sei se ela ainda está bem, mas no momento seus pais haviam aceitado sua decisão. Não sei o desfecho desse caso , mas vou procurar.
Outro detalhe interessante é nós tentarmos inverter um pouco esse momento .. que tal realizarmos um grande desejo enquanto ainda somos "vivos" e saudáveis? não seria bem legal?
porque postergar essa atitude somente para as "últimas horas" não é mesmo? Vivemos sempre em função de satisfazer desejos alheios, porque não os nossos? afinal nunca sabemos quando será nosso último!!! (brincadeira hein!)
Obrigada pelo convite, mas acho que não estou à altura dos escritores que comentam nesse blog!!! vou me limitar as minhas observações.
Até breve

Thanatos disse...

Minha Cara! A idéia que a gente não postergue nada ou, pelo menos, postergue o mínimo já que não existe a possibilidade de realizarmos tudo o que desejamos. Mas, pensando no final da vida, a questão da realização dos últimos desejos é fundamental se queremos apostar na autonomia do paciente como você bem percebeu. Lamento que você não aceite nosso convite. Espero que você possa mudar de idéia. Abraços do Prof ERASMO