Aprendendo a Morrer com Mario Quintana (Erasmo Ruiz)

Continuo a insistir: a poesia é um dos poucos redutos onde podemos aprender um pouco da arte de morrer. Não isso que vemos na TV, as mortes cenográficas, dolorosas, dramáticas. Nem a morte que vemos nos hospitais, os abandonos nos quartos, o lidar com o corpo vivo porém morto à vida num leito de UTI. Falo de preparação, não como uma espera ansiosa mas que tematiza o morrer como algo que expressa também o meu viver para que ele seja mais intenso, porque sabemos agora focar o existente com seu real valor de singularidade e beleza. E quem no ajuda a (re)encontrar esse valor é a percepção de que a morte faz parte do viver. Hoje falaremos de Mario Quintana. Para mim este poeta gaúcho tem a virtude de tornar pesada uma pena e leve um cofre de banco. Mostra sutilezas e complexidades ocultas naquilo que vemos todos os dias e que aprendemos a não "ver" mais. Mario Quintana extrai ouro daquilo que nos acostumamos a chamar de banalidade.. Quintana falou muito sobre a morte, fez inclusive piada dela ao nos lembra que “A morte é a libertação total: a morte é quando a gente pode, afinal, estar deitado de sapatos”. Então, não temos mais que nos preocupar com o fato dos lençóis ficarem sujos com a terra do nosso calçado, aliás, talvez a morte seja isso mesmo, a ausência total das preocupações e, por isso, exercício pleno de uma liberdade que não se exercita.. Quintana pode ser um ótimo companheiro de jornada se quisermos discutir a morte. Recomendo essa jornada a todos e, particularmente, aos trabalhadores de saúde já que eles, muito provavelmente, cuidarão do nosso morrer. A questão é: como estão cuidando hoje em dia? Minha resposta é afirmar que o cuidar não pode estar reduzido a mera monitoração de sinais clínicos de um corpo reduzido a suas funções biológicas. As pessoas a beira da morte perdem a singularidade, se transformam massas biológicas a beira da dissolução. Nós somos muito mais do que isso! O morrer grita pelo exercício de outras necessidades: expressa os quereres especialmente reservados para o fim da vida, pela simples razão que são percebidos como sinais da despedida do mundo e de tudo que amamos. Assim, quando formos falar de morte nos hospitais, por que não pensarmos em Mario Quintana? Vejam por exemplo este soneto: Minha Morte Nasceu... Mário Quintana para Moysés Vellinho Minha Morte nasceu quando eu nasci Despertou, balbuciou, cresceu comigo E dançamos de roda ao luar amigo Na pequenina rua em que vivi Já não tem aquele jeito antigo De rir que, ai de mim, também perdi Mas inda agora a estou sentindo aqui grave e boa a escutar o que lhe digo Tu que és minha doce prometida Nem sei quando serão nossas bodas Se hoje mesmo...ou no fim de longa vida E as horas lá se vão loucas ou tristes Mas é tão bom em meio as horas todas Pensar em ti, saber que tu existes (Fonte: QUINTANA, Mário Poesia Completa. Rio de Janeiro:Nova Aguilar; 2005) Quanta leveza para um tema costumeiramente denso e amedrontador...a morte como um ente que nos acompanha desde o nascimento....como uma namorada de infância com quem um dia, cedo ou tarde, nos casaremos. Já utilizei este poema para estimular trabalhadores de saúde em rodas para tematizarem as suas experiências pessoais com a morte, suas primeiras lembranças. O resultado foi muito bom. As pessoas trouxeram recordações, expressaram lutos mal elaborados, produziram ligações com as experiências de morte vividas no cotidiano. Como todo tabú, depois que percebemos que não haverá necessariamente punições por quebra-lo, a porta se escancara e as pessoas meio que perdem o medo, pelo menos de falar, e percebem que o medo da morte e do morrer que as deixa tão vulneráveis, na verdade é o medo de todos. Assim, nos tornamos fortes quando percebemos que o medo é algo que pertence ao mundo, elemento que tipifica a condição humana. Mas Quintana tem mais a nos dizer: Este quarto Este quarto de enfermo, tão deserto de tudo, pois nem livros eu já leio e a própria vida eu a deixei no meio como um romance que ficasse aberto... Que me importa este quarto, em que desperto como se despertasse em quarto alheio? Eu olho é o céu! Imensamente perto, o céu que me descansa como um seio. Pois só o céu é que está perto, sim, tão perto e tão amigo que parece um grande olhar azul pousado em mim. A morte deveria ser assim: um céu que pouco a pouco anoitecesse e a gente nem soubesse que era o fim..." (Fonte: QUINTANA, Mário Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar; 2005) Aqui Mario Quintana apresenta a percepção da morte por quem está morrendo ou, pelo menos, uma idealização do que ela deveria ser. O olhar do moribundo parece expressar esperança nas promessas de um céu que significa descanso, o fim das dores e sofrimento. Compara a morte a este mesmo céu que a semelhança do dia, cede espaço para noite inexorável, um manto que nos cobre e nos livra da ansiedade de saber que é o fim. Novamente, uma bela metáfora da morte que nos afasta das representações terríveis e dolorosas. A partir dessa leitura as pessoas podem ser estimuladas a falar das experiências que vivem nos hospitais, no cotidiano do trabaho, podem compartilhar os sentidos que tem dado a morte, as percepções do que seriam a mortes dolorosas (física e psiquicamente) e como poderiam atuar para minimizar a dor e vulnerabilidade de pacientes e familiares. Vamos terminando por aqui, encerrando da melhor maneira possível, claro, com Mário Quintana: INSCRIÇÃO PARA UM PORTÃO DE CEMITÉRIO Na mesma pedra se encontram, Conforme o povo traduz, Quando se nasce - uma estrela, Quando se morre - uma cruz. Mas quantos que aqui repousam Hão de emendar-nos assim: "Ponham-me a cruz no princípio... E a luz da estrela no fim!"

3 comentários:

Anônimo disse...

Meu Caro professor...

Pelo que vejo também gostas de Mário Quintana!!!, as vezes comparo Quintana com um dicionário, pois podemos colocar qualquer verbete que lá irá aparecer um texto de nosso poeta refletindo sobre o tema. E no que tange ao assunto morte, ele nos passa mensagens de uma leveza que até rimos com suas definições. é realmente a poesia é uma excelente forma de se envolver com o assunto. Nã sei se leste meu comentário sobre seu último artigo, fiquei aguardando sua resposta.As situações que vivenciamos em nosso cotidiano geralmente nos inspiram a derramar sobre o que escrevemos uma torrente de emoções, produzindo textos ora felizes e flúidos, outros soturnos e tenebrosos. acho que por isso as poesias são um reflexo do que sentimos, podemos ver isso ao ler Mário Quintana, Casimiro de Abreu, Homero, Ghoete,Augusto dos Anjos, Fernando Pessoa. Omar Kayyan... deste poeta dou-te um trecho que acho interessante :

Não temo a morte: prefiro
esse fato inelutável
ao outro que me foi imposto
no dia do meu nascimento.
Que é a vida?
Um bem que me confiaram
sem me consultar
e que restituirei
com indiferença

Outra poetisa que me encanta com seus temas é Florbela Espanca que discorre sobre a morte com pinceladas de realismo, sofrimento e paixão:

Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce lago
E, como uma raiz, sereno e forte.

Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má morte.

Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!

Vim da Moirama, sou filha de rei,
má fada me encantou e aqui fiquei
à tua espera... quebra-me o encanto!

A morte tanto nos acompanha que até aspirantes a poeta deitam suas letras em pequenos versos:

O luto envolve as sombras da casa
os rostos pungentes se dobram em dor
olhando o corpo no leito sepulcro

triste figura a morte nos traz
roubando a luz nas faces coradas
deixando cinérias e macilentas feições

Mão postas,perderam ardor
não falam, não tocam, não amam
não sentem a dor que de meu peito se esvai

A gélida pele tocando em meus dedos
me mostram teu fim ou será recomeço?
Me entrego te cubro te deixo enfim

Que te leve a morte
que reclama o corpo
que me deixes a vida
nas lembranças de tua alma

Até breve...

Erasmo Ruiz disse...

Minha Cara! Espero que tudo estejas bem contigo. Não tenho tido tempo para responder seus amáveis comentários. Muitas coisas acontecendo na vida, emoções para viver e manejar, trabalhos de Sísifo, outros ainda que gratificantes impedidos de serem apreciados pelo momento que vivo. Em outra oportunidade respodnerei a todos os seus comentários com a deferência que eles merecem. Abraços do Prof ERASMO

John D. Godinho disse...

This Sickroom


This sickroom is as barren as my day;
I don’t even read my books anymore.
And my life, since I can’t live it as before,
is like a novel I stopped reading halfway…


Why should I care about this room where I awake
feeling I’m in a stranger’s room, by mistake?
I care about the sky out there, endlessly near,
a sky that comforts me, and soothes my every fear,

The presence of the sky is what I feel and see,
so close and friendly that it seems to be
a great blue loving gaze embracing me.

This is how death should be: it could pretend
to be a sky that gently darkened into night
and we wouldn’t even know it was the end…20)

Mario Quintana
(Translated by John D. Godinho)
Este quarto ( This sickroom) in Notes on
Supernatural History