O jovem homem e a morte (Douglas Garcia*)

Spielberg filmou “O império do Sol” no final dos anos oitenta, há mais de vinte anos. J.G. Ballard escreveu o livro do qual o filme se origina, bem como diversos romances e contos, do qual “Crash” também originou um filme, de David Cronemberg. Li recentemente “Milagres da vida”, autobiografia de J. G. Ballard. O título foi a primeira coisa que me intrigou, uma vez que, logo nas primeiras páginas, Ballard se diz decididamente ateu, desde a infância, postura na qual persistirá por toda a vida. O que seriam os “milagres da vida”? Ele o diz, lá pela metade do livro, e não seria educado eu contar agora, estragando o prazer da descoberta dos futuros leitores. “Milagres da vida” foi escrito sob a perspectiva da morte certa de seu autor, que já vinha acometido de uma doença fatal. Ele o escreveu alguns meses antes de morrer. Os capítulos iniciais do livro, que descrevem a sua infância em Shangai, são os mais vivos e bonitos. Há um imenso colorido e vontade de comunicação expressa nesses capítulos, que correspondem inteiramente aquilo que o autor projetara ficcionalmente em “O império do sol”, e que é filmado por Spielberg. Rever o filme, após ter lido o livro de Ballard me deu uma nova dimensão do trabalho de Spielberg, que se preocupa, nos melhores detalhes, em capturar a experiência do mundo através dos olhos do menino. A interpretação de Christian Balle, criança, no papel que corresponde ao menino Ballard é extraordinária, talvez uma das melhores atuações infantis na história do cinema. A primeira cena de “O império do sol” é a de uma tomada do alto, de um rio tranqüilo, no qual belas flores são docemente levadas pelo fluxo da correnteza. Pouco depois, o espectador vê algo mais: elas são o acompanhamento de caixões de mortos, depositados por pessoas pobres da China diretamente nos rios (esse contexto, fico sabendo pelo livro de Ballard). E, após, um navio de guerra segue em frente, empurrando esses caixões para o lado.. A última cena do filme é também a do mesmo rio, em Shangai, no qual o espectador vê boiar a pequena mala que o menino usara nos anos de guerra, da sua “segunda infância”, totalmente diferente da protegida infância na casa dos pais. Nos melhores filmes de Spielberg, além da riqueza de efeitos visuais, há uma preocupação metafísica, que talvez passe despercebida às pessoas, mesmo aos críticos de cinema. Em “O império do sol”, há as questões metafísicas da morte, de Deus, do outro e do sentido do real e da imaginação. Isso fica mais evidente quando se lê a autobiografia de Ballard. Spielberg desdobra essas questões em termos visuais, com dignidade. O tema central é o da morte, do desaparecimento do real que ela traz – mas um desaparecimento ambíguo, uma vez que permanece na memória e na imaginação – e da irreversibilidade do tempo, que ela aponta. Os elementos visuais dos quais Spielberg se apropria são: as grandes massas humanas, os indivíduos isolados e frágeis, à beira da morte. As águas do rio, em que se misturam vida e morte. Os aviões, que também misturam vida e morte: trazem as bombas que matam, mas são a expressão máxima do talento humano no campo da técnica, que promete uma elevação do homem a níveis maiores de experiência. O menino Jim, no filme – assim como J.G. Ballard, que se tornou aviador por um período, depois da guerra, o sabemos por sua autobiografia – é completamente fascinado por aviões, e possui diversas miniaturas e aeromodelos, que são seus brinquedos favoritos. Ele admira os pilotos japoneses, por sua habilidade e coragem. Ele admira sobretudo os jovens piloto kamikaze japoneses, que vê partir para a morte certa com orgulho e dignidade. Esse é o momento central do filme, o momento em que nós, como espectadores, vemos o olhar do menino, e nos colocamos no lugar dele. Spielberg filma muito bem esses momentos. Nós somos crianças diante da morte. *Apresentação de Erasmo Ruiz: Douglas Garcia, além de ser um grande amigo desde a época em que éramos estudantes, é Psicólogo pela USP de Ribeirão Preto, Mestre e Doutor em Filosofia pela UFMG, Professor da Federal de Ouro Preto. Mas o seu principal atributo não são os títulos mas principalmente ser o Pai do Dudu, um intelectual sempre arguto e inconformado com os rumos do planeta e um ser humano fantástico. Claro, ninguém é perfeito, ele torce para o Atlético Mineiro.

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