A Morte como Espetáculo: A renovação da Paixão de Cristo (Ayala Gurgel)



O que a Paixão de Cristo e os Circos Romanos têm em comum? O mesmo que Bandeira 2 e Brasil Urgente também têm: um certo gosto pela morte como espetáculo.

Para autores como Guy Debord, a Sociedade do Espetáculo é uma estruturação recente da sociedade. No tocante à morte e ao morrer, isso não é verdade. Como também não é verdade que a morte tratada como um interdito ou uma pornografia seja típico das sociedades industriais. Há mais especutalirazação da morte e do morrer nas sociedades ociedentais do que pensam Ariès e Gorer.

No auge das sociedades romanas, quando os imperadores se auto-proclamavam deuses e incluíam seus nomes em calendários, ruas e províncias, em busca da imortalidade pela memória histórica, difundiu-se um gosto, no mínimo, macabro: os circos.

Nesses, homens se enfrentavam entre si ou enfrentavam feras até a morte. A morte estava bem ali, ao alcance da visão de todos e sob o polegar de um único homem. Um espetáculo que reuniam a todos, de cidadãos a plebeus, em busca da visão mais sanguinolenta, da morte mais espetacular, do corpo mais despedaçado e do sangue que jorrava mais longe.

Pediam e recebiam: dêem-nos um espetáculo que alimente a nossa ira e vontade de ver sangue...

A arena era o único local no qual a violência era permitida. A brutalidade reprimida dentro de todos podia ser estravasada nos gestos das feras humanas ou não humanas ou nos gritos da plateia... Tudo era muito bem pensado: a explosão de ira que não podia acontecer nas ruas, acontecia ali, sob controle do Estado. Ao final, todos retornavam à sua vida banal, purificados pelo sangue derramado, mansos como cordeiros.

A queda do império romano não foi suficiente para demolir o gosto pelos espetáculos sanguinolentos nem para as mortes mais bizarras. Em muitas culturas pós-romana se manteve o gosto por esse tipo de espetáculo: touradas, safaris, linchamentos... e a Paixão de Cristo.

Como tudo que passou pelo crivo da encarnação da fé, os espetáculos macabros precisaram também ser ressignificados para virarem cultura cristã. Por que matar tantos se a morte de um único inocente bastaria? E, se esse inocente fosse um deus, não seria muito mais espetacular? A morte de um deus, acompanhada dos requintes de crueldade e com muito sangue derramado, seria um espetáculo mais do que adorado: preencheria todas as expectativas dos desejos de crueldade dos romanos convertidos.

Mel Gibson não exagerou na sua Paixão de Cristo, ao contrário, captou muito bem o espírito original da saga, que a cada ano se repete, antes de todos voltarem para casa, satisfeitos e purificados porque canalizaram contra seu proṕrio deus toda a sua violência, satisfazendo os desejos mais secretos de se vingarem de tudo que os oprimem...

Não há nada de belo em ver uma pessoa ser surrada até a morte, muito menos em fazer disso um espetáculo, inclusive apresentável a crianças, quando não com a participação dessas. Como diria Heráclito, não fossem para os deuses esse espetáculo, consideraríamos a coisa mais horrenda e reprovada. Cadê o Ministério Público que não proíbe esse atentado contra a moral dos bons costumes (aliás, parece que confudem isso com bons costumes), ou pelo menos, a participação de crianças em ato tão violento?

A Paixão de Cristo, ou melhor, a Surra de Cristo, ou a Morte Espetacular de Cristo não é só um espetáculo que alimenta o gosto pela morte violenta, como também interdita formas saudáveis de se conviver com a dor e a morte. Nossos interditos vêm de longe e são muito arraigados no nosso imaginário...

7 comentários:

Valdecy Alves disse...

Nos tempos atuais ao seguimos um blog ou sermos seguidos, formamos uma verdadeira teia, capaz de ter um alcance quantitativo e qualitativo para matérias formativas e informativas, que mídia alguma consegue ter. Já imaginou se os pré-socráticos e pós socráticos tivessem tal meio divulgador na sua época? A história seria outra! POR ISSO PARABÉNS PELO BLOG.

Aproveito para CONVIDAR VOCÊ, seus seguidores e quem você segue, para lerem matéria sobre o espetáculo SAGRADO E PROFANO, que ocorrerá na cidade de Senador Pompeu, interior do Ceará, no pequeno Distrito de Engenheiro José Lopes. Experiência artística que mobiliza toda a população, que além de encenar a Paixão de Cristo ainda tem os caretas, que há cerca de 70 anos, saem pelas ruas. Experiência artística, social, política, folclórica, econômica..... que merece ser relatada, imitada e, sendo possível, vista e visitada ao vivo. Boa leitura em:

www.valdecyalves.blogspot.com

Anônimo disse...

Você reduz o sacrifício de Jesus ao seu olhar mundano. Não consegue captar a dimensão sagrada do seu martírio. Ele morreu por todos nós e por você também. O que faz isso um espetáculo são homens que não percebem o sagrado, como você ao divulgar essas idéias por aqui. Lamentável isso tudo.

Nara disse...

Realmente lamentável vc brincar com a fé das pessoas. Transforme-se numa pessoa melhor.

Anônimo disse...

Não entendo o texto do Professor Gurgel tendo qualquer conotação de brincadeira com a fé das pessoas. Brincadeira de mal gosto é o comércio que existe em torno das atividades religiosas com estímulo da própria Igreja Católica. Achei a comparação entre o circo romano e a paixão de Cristo apenas provocativa e não ofensiva.

Ayala Gurgel disse...

A fé é uma realidade subjetiva. Diz-se até que é um dom. A forma como essa fé é vivenciada é um evento historicamente determinado. E, como tal, ela sofre mudanças ao longo dos tempos, de modo que, alguns paradigmas de algumas épocas ou locais são transformados, em outras épocas e locais, em memória indesejada, comportamento apóstata ou herege. Um caso bastante típico são os "pentinentes" alemãs. De modelos de fé da europa medieval do século X e XI, passaram a perseguidos no século XII e XIII. Não são poucas as devoções e os autos de fé de uma época, cultura ou civilização que são banidos e lembrados como motivo de vergonha em épocas posteriores, dentro da mesma Igreja Católica.
A teologia nos ensina que a encarnação da fé é santa e pecadora em todas as suas dimensões. Portanto, meus inquisdores de plantão, não me refiro à fé de nenhum de vocês. Refiro-me ao evento espetacular no qual e com o qual a Paixão de Cristo tem sido representada historicamente nos últimos oito séculos. Não acredito que vocês tenham a coragem de negar o ato selvagem no qual ela foi transformada (basta ver que o a Ressurreição - o dogma de fato que deveria ser ressaltado no espetáculo - é colocado em segundo plano (em alguns autos da paixão, ela acontece apenas para encerrar o evento. Em algumas vias sacras, ela sequer existia).
Se não conseguirem separar a fé de vocês do espetáculo selvagem com o qual a Paixão tem sido apresentada. Se não perceberem a violência que ela alimenta... talvez a fé não seja um dom ou não seja pertinente para uma sociedade pacífica e respeitosa da dignidade humana, tal como queremos construir, o que significa, tratar a todos os moribundos em sua mais pura dignidade. Que o sofrimento na beira do leito pode ser amenizado sim, que a dor pode ser controlada, que morrer não precisa ser uma reprodução exata daquele espetáculo...

Unknown disse...

O risco fascinante da comunicação esta nas múltiplas interpretações... Vejam só o meu sentimento diante do texto do Ayla... Encontrei até nas minhas ultimas vivencias como profissional a semelhança com a "paixão" de Cristo.De modo algum, a leitura agrediu a minha fé, até pq conservo a esperança em um Ser Maior, e me satisfaço na responsabilidade de ter sido concebida sob a imagem e semelhança daquele que é a síntese do Ser perfeito, me condicionando a seguir a fidelidade aos valores humanos e aquele antigo contrato social, os Dez Mandamentos... não creio na estúpida interpretação que alguns homens fizeram e fazem daquilo que dizem entender de Deus... é fato que muitos sofreram e ainda padecem em razão de homens que ancoram suas atitudes bárbaras justificando agir em nome da vontade de Deus....Somos apenas reflexos, passivos de todas as distorções que nossos sentimentos podem provocar...o "tapa" deveria ser o reconhecimento de que AINDA NÃO SABEMOS O QUE FAZEMOS...de acordo com o que sei a humanidade condenou o filho de Deus, ou o próprio Deus vivo, e me parece que o desconforto real esta ai..Ah!como Assistente Social evidencio o sacrifício de crianças e adolescentes banidos e crucificados..vitimas da barbaridade do trafico e do nosso ato imperial de "lavar as mãos".

Unknown disse...

Acho o ser "humano" um tanto mórbido, ávido por violência ,sangue. CULTURA OU PSICOLOGIA?? is the question...mas como separar a normalidade cotidiana da violência estampada nas nosas caras, se a violência(conflito) é fator estruturante da sociedade?