A Paixão de Cristo e a Morte da Paixão (Erasmo Ruiz)



A Paixão de Cristo e a Morte da Paixão
Inspirado e provocado pelo post de Ayala Gurgel bem como por certo perfil crítico e injusto que recebeu, resolvi escrever esse texto.
Desde a mais tenra infância fui exposto aos impactos estéticos da morte de Cristo. Assim, escrevo de um ponto de vista muito pessoal embora o "pessoal" aqui deva ser entendido num sentido histórico, qual seja, não podemos apartar com tanta facilidadee aquilo que é do indivíduo daquilo que é do mundo. Tudo forma um amálgama complexo, uma totalidade constituída pelas ações conccretas da minha identidade em interação dinâmica com o que os outros seres humanos nos inscrevem.
Assim, a história que move a paixão de Cristo se perde na mais remota antiguidade. Começa milhares de anos antes de Cristo nascer. É de certa forma contada pelos mitos sacrificiais e de ressurreição como de Osiris, ou de Abrão ao se dispor a sacrificar o próprio filho. A idéia de sacrifício permeia boa parte das religiões inclusa aquelas que não pagam tributo a uma origem Judaico-Cristã.Basta pensarmos, por exemplo, na punição de Prometeu ao fazer o bem aos homens
Mas quando falamos do episódio do Sacrifício de Jesus, falamos de uma história que nos toca de perto pois cada um de nós imerso na cultura ocidental somos o tempo todo bombardeados com seus elementos, de tudo aquilo que a história contém de belo e trágico, um efeito que pode ser mobilizador de boas ações ou justificador dos gestos mais bárbaros. Como um acontecimento que extrapolou seu sentido de verdade, é apropriado em cada momento histórico e em cada circunstância de cada período, de uma forma especial e interessada. Em nome do Sacrifício de Jesus ordens religiosas que minimizavam o sofrimento humano foram criadas. Em nome do sacrifício de Jesus cidades foram conquistadas e dizimadas.
Portanto, parece-me que a história do sacrifício de Cristo não traz um bem ou um mal imanente a própria história mas aquilo que identificamos como "mal" ou "bom" diz muito mais respeito a forma como essa história é apropriada. E, neste sentido, Ayala foi muito feliz ao paralelo que construiru entre a Paixão de Cristo e o Circo Romano. Parece que a paixáo se tranformou num espetáculo, diria mesmo que, muitas vezes, a idéia de espetáculo se transforma em sua literalidade, haja visto o exemplo da representação teatral a céu aberto que ocorre em Nova Jerusalem (sertão de Pernambuco) parece que se reproduz no mundo todo em escala comercial. Neste sentido, a sociedade mercantil esvazia gradativamente a Paixão de Cristo de seu significado sacro, submetendo-o ao seu sentido maiis profano: Como mercadoria que deve ser vendida e comprada. Há portanto um nexo entre a morte de Cristo como espetáculo e a transformação deste espetáculo em elemento de mercado.
Assim, quando somos crianças, encontramos uma realidade já posta. Nunca ocorreu-me questionar se tudo aquilo que via na TV, nas Igrejas, nos quadros, nas falas, nos discursos, nas procissões era verdade ou não. Essa realidade se apresenta a nós como ente paupável e praticamente inquestionável. E hoje em dia, a realidade da Paixão aparece decididamente associada ao mercado. O feriado, por exemplo, está muito mais mobilizado pela indústria do
turismo e não mais aproveitado para as cerimônias religiosas. Hoje a Paixão de Cristo se torna uma desculpa para que a classe média dê uma escapada para a praia e o proletariado possa acordar um pouco mais tarde.
Assim, devemos talvez nos voltarmos mais uma vez à sabedoria dos poetas. Questionar a verdade histórica ou mítica dos evangelhos é uma tarefa árdua para os historiadores, eles mesmos em parte "contaminados" pelo sentido místico da história que investigam pois mesmo aqueles que não acreditam, ao voltar seu olhar ao cristianismo, não estarão estudando um mito mas uma religião viva com todas as suas consequências de determinação simbólica. Existe um soneto em espanhol, de autoria anônima, talvez escrito na virada do século XVI para o XVII e que foi traduzido por Manoel Bandeira:
Não me move, meu Deus, para querer-te
O céu que me hás um dia prometido:
E nem me move o inferno tão temido
Para deixar por isso de ofender-te.
Tu me moves, Senhor, move-me o ver-te
Cravado nessa cruz e escarnecido.
Move-me no teu corpo tão ferido
Ver o suor de agonia que ele verte.
Moves-me ao teu amor de tal maneira,
Que a não haver o céu ainda te amara
E a não haver inferno te temera.
Nada me tens que dar porque te queira;
Que se o que ouso esperar não esperara,
O mesmo que te quero te quisera.
O que me fascina neste soneto é sua afirmativa mística eivada da dúvida. Afirma o céu e o inferno mas, ao emsmo tempo deixa espaço para questionar tudo isso. O que resta então? É o exemplo do acontecimento, é a expressao do Cristo humano sofrendo em nome de princípios e valores. Talvez essa seja a página esquecida da Paixão. O exemplo de se morrer por valores e o quanto determinadas falas ainda ofendem determinados princípios embasados na violência e na maleficência. O que o velho soneto nos acena é que, mesmo que o sentido mmístico da morte de Jesus não seja real, o exemplo deixado pelo martírio é algo que nos impacta e nos faz pensar sobre o sentido que damos a nossa própria vida.
Meu olhar agnóstico me leva então a buscar um sentido humano nesse Cristo, o que me aproxima muito do Evangelho de Marcos onde vemos um Cristo relutante e temeroso com o próprio sofrimento que prevê mas que, ao mesmo tempo, talvez seja necessário para afirmar o discurso do dar pão para quem tem fome e água para quem tem sede como uma verdade que se constroi na ação. Talvez nos sintamos capazes de fazer a mesma coisa se nos esquecermos um pouco da dimensãao mística e pensarmos que não precisamos ser um deus para construirmos uma sociedade mais ética e solidária. Proponho assim um resgate da dimensão humana da Paixão. Não se trata da glorificação da estética da violência e da morte mas sim da glorificação da estética do valor sacrificial do sentido do dever a ser cumprido, a tal ponto que encontramos um novo sentido de liberdade, Não foi isso que nos ensinou Montaigne? Saber morrer nos exime de qualquer sujeição e coação!

Um comentário:

Ayala Gurgel disse...

Meu caro amigo, Erasmo
Um dia aprendo a escrever com as cores e o brilho que consegues. A tua capacidade de juntar a poesia, a crítica e tanatologia em uma única redação, faz dos teus textos opúsculos de arte.