A morte digna de Quincas Berro d'Água (Ayala Gurgel)


Morrer não é o mesmo para todos. Já disse isso antes e repito. O mito de que a morte é um juiz imparcial que não faz distinções é apenas um mito. Se a morte é um tipo de justiça, é a justiça do viver. Jorge Amado sabia disso e transcreveu para a forma de livro, em 1958, na obra  A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água, que em 1961 já estava no teatro e em 1978, na TV, e, finalmente, esse ano chegou aos cinemas, sob a direção de Sérgio machado.

O filme mantém a mesma preocupação do romance com a apresentação de uma morte justa para Joaquim Soares da Cunha, funcionário público, pai e marido exemplar, mas que depois de se aposentar tornou-se um exemplar malandro nas vielas de Salvador, capital da Bahia.

Os primeiros a se preocuparem em oferecer-lhe uma morte à altura foram seus familiares: a filha, Vanda, principalmente. Era preciso narrar um fim digno ao homem exemplar que se fora. Então, tudo bem se ele virara comendador no estrangeiro. O importante era que não se soubesse que tão digna família tinha um patrono bem ali, na esbórnia, deitado em camas de prostitutas e a beber entre os negros, frequentando os terreiros e, o mais inadmissível, sendo mais feliz do que o que já fora em toda a sua vida.

Morto e enterrado, Joaquim Soares da Cunha recebeu o fim merecido, virara comendador para uns e nascera como Quincas para outros.

Esse último também morreu. E dessa vez, de forma tão indigna quanto a primeira. O  Rei dos vagabundos da Bahia, o Cachaceiro-mor de Salvador, o filósofo esfarrapado da rampa do mercado, o senador das gafieiras... ser encontrado morto, em seu mísero quarto no subúrbio, pego pelos males do coração... quanta inglória para um homem tão digno.

Se Vanda, Leonardo, tia Marocas e Eduardo não podiam aceitar o fato de vê-lo ali, em meio a tanta imundície física e moral, muito menos o poderiam Mestre Manuel, Quitéria, Negro Pastinha, Curió e Pé-de-Vento. Não pelas mesmas razões, é óbvio, mas porque tamanho homem, no dia do seu aniversário, não podia partir sem uma festa à altura. A sua festa.
Nascer, viver, vencer... todos os atos da vida merecem festas, bebidas, bolo, música... a morte, o grand finale vai ser isso? essa coisa sem graça? isso é indigno de um homem como Quincas. Os amigos lhe preparam o que qualquer amigo faria: uma despedida a altura. E, onde muitos veem comédia, eu vejo um ato bravo de dignidade, de respeito à memória do morto, uma forma bastante criativa e saudável de se despedir, de fechar seus rituais de luto.

A maior justiça que a morte pode fazer a alguém, é deixá-la morrer como viveu.

A morte não é a mesma para todos, pela simples razão de que a vida também não o é. Uns são Joaquim, comendador, outros são Quincas, Berro d'Água... e todos somos mortais. Até lá, vivamos e comemoremos, amanhã a lua pode nos procurar em vão.

4 comentários:

Anônimo disse...

essa é a morte digna? a morte de um bêbado? isso não é apologia do alcoolismo?

Ayala Gurgel disse...

Até o adicto tem direito a uma morte digna. Não fazemos discriminações nem apologia, não odiamos nem idolatramos o consumo abusivo de álcool. Reconhecemos que isso é um problema de saúde pública não enfrentado devidamente. O exemplo do Quincas Berro d'Água não deve ser centrado na pessoa do morto ou mesmo no seu estilo de vida, mas nas pessoas ao seu redor que, enlutadas, acreditaram que o morto merecia uma morte à altura do que fora (um comendador ou o rei da boemia, isso é indiferente).

Erasmo Ruiz disse...

Caro Ayala e Sr(a) Anonim@!

Ayala, seu raciocínio é perfeito. Se existe apologia ao uso de alcool é a mídia quem o faz a partir dos interesses mercadológicos na propaganda. O uso de alcool é um problema rave de saúde pública, quase tão grave quanto o puritanismo que existe em algumas assertivas de cunho proibicionista. Antes de ser uma "apologia" ao uso de alcool, Quincas Bero D'água é boa literatura. Em tempos de legislação cada vez mais probicionista, talvez devêssemos censurar Florbela Espanca:

FUMO

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são Outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...

Anônimo disse...

Leiam esse comentário de Pondé na Folha de São Paulo:

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2106201015.htm