"A Sete Palmos": A Dificuldade de Encarar o Morrer (Ney Ronaldy Oliveira Paula*)



Muito mais que um seriado triste e que fala somente na morte do início ao fim de seus episódios, “A Sete Palmos” nos leva a uma atmosfera em que a questão da morte é tratada de uma forma diferenciada, já que a visão que se tem, em geral, é a da família Fisher, uma família em que todos trabalham no ramo dos funerais ou são atingidos pelas consequências deste trabalho.
A empresa "Fisher & Sons" realiza funerais de uma série de pessoas que, frequentemente no início de cada capítulo, morrem de diferenciadas formas. Cada episódio se embasa no processo do velório e de todos os serviços funerários requisitados pelos familiares. Misturado a esse quadro peculiar, a história da família Fisher mostra-nos uma série de características um tanto estranhas, como podemos analisar logo no primeiro capítulo com a morte do patriarca da família. A atitude deliberada pela senhora Fisher é de gritar e gritar loucamente, num ato de puro desequilibrio. Mas, afinal, a família em que todos os seus membros tem que lidar diariamente com o prisma da morte não deveria ser mais bem preparada para uma situação como essa?
Outro ponto ressaltado nos episódios é o fato do filho homem mais novo esconder, até um certo momento, a sua homossexualidade. A filha mais nova com sinais de muita rebeldia, parece mostrar um pouco o quanto é difícil conviver sempre ao lado da morte, tão difícil em pequenos, mas marcantes, momentos de nossas vidas. O primogênito da família é um jovem homem que saiu de casa e volta no momento da morte do pai. A história começa para valer em saber se a empresa "Fisher & Sons" deveria continuar suas atividades ou fechar, vendida para empresas maiores que querem fazer o monopólio do ramo
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Essa pequena explanação sobre o seriado se parece com a história de vida de algumas pessoas que vivem no mesmo ramo que a família Fisher. Em Fortaleza, no Ceará, uma família muito parecida continua com a empresa por muito tempo. Foi passada de geração a geração até chegar a um senhor muito simpático: meu pai. Minha família também trabalha com o ramo de funerárias. Passei minha infância entre caixões e vendo as mais variadas expressões estampadas nos faces de várias pessoas que passavam por aqueles já citados momentos curtos, porém marcantes. Quase sempre expressões de dor e sofrimento.
De várias reações poderia citar a da família que perdeu um jovem homem de 32 anos em um ataque cardíaco fulminante. A família estava triste, mas o que eu notava era o espanto, a perplexidade nos olhares de seus parentes. Uma pessoa tão nova, sem nenhum sinal de doença grave ou até mesmo problemas simples. Um homem que praticava esportes, vivia uma vida saudádel, na medida do possível. Como pode acontecer uma coisa dessas? "Pegadinhas" da vida (ou melhor, da morte). Voltando as cenas que merecem destaque, lembro da senhora, nunca soube sua idade, que morreu e ficou com a pele um tanto amarelada. Doença de fígado. A família pediu para que tentássemos fazer o melhor em relação a esconder a aparência muito degradante, pelos menos para a família, da senhora. Tentavam desviar a atenção do principal naquele momento, que não era a aparencia da senhora, era a falta dela, de seus cuidados com o rosto, como era delicada em seus cuidados mesmo depois das marcas do tempo mostrarem-se. Não estavam sofrendo menos, mas só adiando o sofrimento, a dor de perder alguém tão próximo. Como o caso da famĺia Fisher, que perdeu o patriarca. Todos os outros mortos não passavam de trabalho. Quando se depararam com a real situação, desabaram, mostrando que, mesmo tendo contato direto com velórios e cadáveres, ainda não tinham contato com a idéia de morrer, a qual veio à tona na morte do primeiro episódio.
Tento passar que a reflexão da morte não deve ter um caráter de superstição, de que ela estará mais próxima caso falarmos em tal . Próxima ela está de cada um de nós, sem que percebamos. Um fio finíssimo estabelece o limite da vida ou da morte. É claro que não devemos ficar paranóides a ponto de deixarmos de viver e passarmos a nos preocupar direto com o fato de que podemos deixar essa vida a qualquer momento, de que somos frágeis o bastante para sermos levados por algo que não imaginamos. A discussão da morte desse ser encarada como um modo de notarmos o quanto é bom vivermos e percebermos que o privilégio de viver é nos dado sem que notemos. Com isso, sabermos que a morte é uma possibilidade existente em nossas vidas traria um ar de maior liberdade, de maior gosto no que fazemos e assim, poderíamos desfrutar plenamente de momentos vivenciados e entendermos melhor do processo pelo qual cada um passsará.
* Ney Ronaldy é estudante de enfermagem e bolsista de Iniciação Científica em Projeto de Pesquisa coordenado pelo Professor Erasmo Ruiz

Um comentário:

Jacqueline Abrantes Gadelha disse...

Oi, Erasmo!
Fico contente que estudantes de enfermagem estejam se envolvendo com a temática. Belo texto e interessantes as vivências que ele traz.
A cada dia vejo ser necessário este envolvimento. Atuando como enfermeira na Estratégia Saúde da Família, sinto necessidade de um espaço onde possamos falar dessas perdas, reelaborá-las,ou mesmo, compartilhar o sofrimento que a morte nos traz. Paira ao redor do tema ainda um grande silêncio.
O ney sugere:Por que não aprender com a morte? Mudar o curso das coisas, quem sabe, retomar o que ficou para trás, buscar o que realmente importa, transpor as superfícies, penetrar nas essências, libertar-se das mediocridades diárias que fazem nossos corpos/almas cativos, ir ao encontro da simplicidade oculta no belo.
Certo dia, minha filha de seis anos me surpreendeu, dizendo: “quero morrer brincando.”
Brincar!
Rir do tempo, saltar poças dágua, contar estrelas, querer comer a lua.
“Desadestrar” mãos, boca, olhos, voz, ouvidos...
Lembrei de um velho amigo sertanejo, meu avô. Pai de quinze filhos, avô de uns quarenta e alguns netos. Aos oitenta e quatro anos, após ter sido vítima de vários AVC’s, já não conseguia andar, sua voz fraquejava e algumas das lembranças já haviam se perdido. Pedia que o levassem na cadeira para ver a chuva. Olhava a chuva como se estivesse enxergando pela primeira vez. Mandava que os netos “ganhassem” a rua, que não perdessem de banhar o corpo naquela água, presente dos céus. Diante da chuva, seus gestos revelavam o menino que sofreu as dores da seca, da terra rachando pelo sol, dos bichos morrendo de sede: aplaudia, gritava, colocava as mãos trêmulas em concha pela porta até que a última gota deixasse de cair.
Quando a chuva cessava, o meu amigo juntava as crianças ao seu redor e lançava desafios matemáticos premiando com doces e moedas aqueles que mais rapidamente lançassem as respostas corretas. Teve que aprender com a vida a fazer contas: os números nasceram na colheita, na pesagem do algodão, na safra do feijão. Nunca havia freqüentado a escola.
Apreciava as bolhas de sabão sopradas do talo do mamoeiro, os piões rodopiando, fazendo círculos infindos no terreiro, os versos de cordel, o muçambê florido, as cantigas de roda e as adivinhações.
Brincava com os olhos, com as mãos, com os ouvidos.
Passado o tempo, não mais pudera sair para sentir a chuva. Definhou durante meses sobre a cama em um quarto escuro, a família tentava em vão fazê-lo viver, mas ali já não era mais ele.
Para mim, ele morreu brincando...
Um abraço,
Jacqueline