Em Discussão o "Testamento Vital" (Erasmo Ruiz)


Quando ouvimos dizer que alguém está fazendo um testamento logo nos vem à mente a imagem de uma pessoa já idosa que não tendo mais como contornar o problema da morte, lega seus bens materiais para quem fica, geralmente parentes próximos. O testamento é, dessa forma, um documento com nítido caráter jurídico e econômico. Aliás, quem já teve a oportunidade de ler um testamento passou por uma experiência tediosa precisando invocar um amigo advogado para entender aquele idioma ininteligível.
Mas em outros momentos históricos já foi diferente. Num passado não tão distante o testamento além de ter sua marca econômica possuía também um sentido ético e moral ao exortar aqueles que ficavam a buscarem determinadas regras de conduta, e mais, funcionava como uma extensa lista de pedidos do morto para que sua alma fosse cuidada no além (a partir de orações e outras obrigações religiosas) e a memória da identidade fosse preservada na terra (com ritualizações que lembrassem aniversários de morte e nascimento, somas que fossem destinadas a caridade para lembrar o morto etc etc).
Agora estamos entrando num novo momento. Em muitas situações existem flagrantes violações que atingem a dignidade humana das pessoas. Uma delas pode acontecer no processo de morrer quando fica patente que mesmo em casos onde o moribundo ainda tenha consciência e desfrute de suas capacidades mentais, tem sistematicamente sua vontade desrespeitada.
Pessoas que insistentemente sinalizam a vontade de morrer em casa acabam confinadas desnecessariamente a leitos de UTI ou na solidão de quartos hospitalares. Indivíduos fora de possibilidades terapêuticas que sinalizaram expressamente o desejo de não serem ressuscitados caso tivessem parada cárdiorrespiratória são trazidos de volta a vida para continuarem num mar revolto de sofrimento e dores desnecessárias. Indivíduos que poderiam desfrutar de últimos dias com algum nível de atividade física e mental acabam tendo sua morte apressada ou então estendem processo agônico devido a intervenções invasivas fúteis que só alimentam a obstinação terapêutica e o narcisismo de alguns profissionais. .
Nos dias 27 e 28 de agosto o Conselho Federal de Medicina estará promovendo um encontro entre médicos e juristas para discutirem o "Testamento Vital". Funcionaria mais ou menos da seguinte maneira. Enquanto está consciente o paciente irá determinar a redação de um documento na presença de testemunhas onde descreve quais devem ser os limites do seu tratamento para que possa morrer com dignidade. Dessa forma, o paciente legitima e legaliza o papel de sua autonomia pois em algum momento poderá não estar mais consciente quando decisões importantes que afetam sua existência podem ser tomadas. Mas, creiam-me. Não estaremos inventando nenhuma novidade. Como nos alerta Eliane Brum em interessante artigo na Revista Época , essa modalidade jurídica já existe nos Estados Unidos, alguns países europeus e aqui pertinho no Uruguai.
Até onde deve ir o exercício da nossa liberdade? Essa é uma pergunta que nos fazemos o tempo todo, particularmente nos momentos em que nossas liberdades são constrangidas. Responder a esta pergunta é a tarefa de uma vida toda e tentar construir no plano prático as respostas nos torna seres políticos. A vida só termina quando morremos. Mas nossa liberdade tende a morrer antes. Vida e liberdade são elementos tão importantes da existência que podem e devem caminhar sempre juntas...até o fim!

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