Idealizações Sobre a Morte (Erasmo Ruiz)


Como você idealiza a morte? A pergunta pode parecer ausente de sentido já que, a princípio, a maioria das pessoas pensa na morte como algo horrível. Não queremos aqui retirar da morte seu caráter avassalador na medida em que seu acontecimento coloca nossas vidas de cabeça para baixo ao retirar  o convívio de pessoas tidas simbolicamente como insubstituíveis. Essa mera constatação coloca a morte como um evento essencialmente doloroso e impactante.

Tendemos a agir em acordo com nossas crenças e valores. Significa dizer que somos profetas prontos a realizar nossas próprias profecias. Por conta da ausência do se preparar para a morte, ela comparece restrita ao que tem de mais terrível. Daí é fácil configurá-la como um monstro sendo popular até hoje vê-la como uma ceifeira, um esqueleto vestido de preto arrancando a alma das pessoas.

Os filósofos desde a Grécia antiga nos ensinam que teríamos de buscar uma relação mais saudável com a morte. Na “Apologia de Sócrates” temos sintetizado o discurso socrático sobre isso. Afinal, o que pode ser a morte a não ser duas coisas: ou o fim absoluto que nos brinda com a  ausência radical de sensações inclusa as mais terríveis como as sensações dolorosas ou, então, a possibilidade maravilhosa do reencontro dos que já se foram, a descoberta de que a consciência da vida não termina com o fim da vida orgânica.

Na “Carta a Meneceu” Epicuro nos alerta que vida e morte são fenômenos estanques e dissociados pois enquanto existimos a morte não é nada e quando a morte existir nada seremos. O problema no entanto é que, se a morte não está presente enquanto vivemos, a consciência da morte se dá pela morte dos outros como algo pertinente a nossa individualidade. Ao constatar isso como que nos tornássemos epicuristas covardes na medida em que, diferente dos gregos, não queremos mais discutir a morte e sim fugir o tempo todo dela. Para isso colabora decididamente o discurso da medicina ao transformar o morte num “ponto” (“diagnóstico da morte”, “hora da morte”, “causa mortis”), como se morrer fosse uma simples intercorrência e não algo que acontece na vida de todos.

As conseqüências disso nas práticas de saúde são trágicas. A morte é tomada como “fracasso” profissional. O que se convencionou chamar de obstinação terapêutica pode então ser parte de uma farsa onde a equipe mobiliza suas energias para que as pessoas não digam que tudo o que era possível não tenha sido feito. O que alimenta hoje grupos a buscarem regulações legais para a permissão da eutanásia ativa ou do suicídio assistido se reveste muitas vezes da necessidade de recobrar autonomia frente a um aparato tecnológico que é utilizado para negar a morte a qualquer preço, mesmo que este preço signifique trazer dor e sofrimento inútil para quem está morrendo. Diante da tragédia do congelamento da agonia, trata-se então de fugir dessa morte pela própria vontade

Vinícius de Moraes possui extensa obra que nos remete a pensar na morte. Em boa parte dela o poeta nos convida a buscar representações onde a morte aparece de uma forma branda, quase como uma recompensa depois de longa e intensa vida. Por exemplo, em seu “ O Haver” o poeta nos fala de como na velhice temos uma mudança radical na perspectiva de  nosso olhar sobre a vida que impacta em tudo que sentimos dela. O poema é longo mas convido o leitor para sua parte final:

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada.

A morte pode ser isso, um encontro que na verdade já está sendo pensado ou até planejado há muito tempo. Como diziam os poetas românticos, uma boda há muito prometida. Se na vida nossa consciência flerta o tempo todo com a morte, no futuro esse flerte irá se transformar em relação de compromisso. Impedir esse encontro na hora em que foi marcado é como que paralisar o casamento quando a noiva está se encaminhando para o altar...uma caminhada que se iniciou desde o instante do nascimento. Imagine então a ansiedade vivida pelos convidados da cerimônia? Quem iria querer uma vida em suspenso indefinido diante do seu desfecho?

Podemos continuar vendo a morte como um horrendo esqueleto que ceifa a vida. Mas também podemos investir na doce amada prometida. Claro, as escolhas não precisam necessariamente seguir nessa dicotomia. Mas é preciso mudar o quadro de horror absoluto em que vivemos. A mesma tecnologia que renega a morte pode ser utilizada para abrir os caminhos para que ela chegue em paz!




  




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