Massacre no Realengo: cultura da violência e fundamentalismo? (Ayala Gurgel)


Depois do minuto de silêncio, é hora de falar sobre o que aconteceu.


Hoje, dia 07 de abril de 2011, será um dia que entrará para a memória de muitas pessoas e será lembrado e relembrado por muitos cariocas, brasileiros e outros cidadãos espalhados pelo globo como o dia do Massacre do Realengo. Uma imitação, talvez, do que aconteceu em outros países como Alemanha, China, EUA.

Nesse dia, um jovem chamado Wellington Menezes de Oliveira, de apenas 24 anos, entrou na Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro do Realengo, zona oeste da capital fluminense, dizendo ir proferir uma palestra aos alunos. Subiu por três andares, desacompanhado, e entrou em uma sala onde 40 alunos da nona série assistiam aula de português. Ali disparou contra os estudantes com idades entre 12 e 14 anos, tendo como alvo preferencial, meninas.

Os motivos dessa atitude são matéria para muitas especulações, assim como o fim trágico do próprio atirador. O fato é que ele tinha a clara intenção de matar, e o fez. Ao todo, 10 vítimas na hora e mais de 20 feridos. O número de enlutados, em uma situação como essas, se multiplica e muitos ficarão com medo de frequentar suas salas de aula e olharão, nos próximos dias, com temor para algum suspeito imitador.

As especulações começaram com várias elaborações teóricas em torno do estímulo discriminativo que pode levar alguém a cometer uma ação como essa, bem como sobre a sanidade do atirador. A carta deixada por ele, no local, alimenta algumas dessas teorias e rechaça outras. Outras informações virão à tona nos próximos dias, após a invasão da sua conta nas redes sociais, seu computador, suas coisas mais pessoais e restrito círculo de amigos (incluindo alguns meros conhecidos).

Muitas dessas teorias são meras especulações sensacionalistas e pretendem apenas segurar a audiência por alguns minutos a mais. Dentre essas destaco aquelas que buscam um culpado: a assistente social que lhe deu o resultado do exame soropositivo sem prestar a devida assistência, a família que não percebeu seu isolamento, vizinhos e amigos que supostamente sabiam dos planos e não denunciaram, o uso indiscriminado da internet, a ausência de vida social, o porteiro que deixou o cara entrar sem passar por uma revista, a falta de segurança na escola, a demora da polícia em chegar ao local, o traficante que vendeu a arma etc. Talvez não exista um culpado ou todos sejam culpados, pois a extensão dessa lista pode chegar a cada um de nós, como eleitores, cidadãos, consumidores de uma ideologia que alimenta e retroalimenta esses paradigmas comportamentais.

Não quero trabalhar com a análise da culpa, nesse momento, quero apenas pontuar algumas questões morais em torno desse ato:

1) Não se trata de um ato isolado. Uma ação dessas não existe sem que alguns elementos se cruzem, como mostram a análise dos casos anteriores nos países onde ocorreram:

a) fator psiquiátrico (que pode ser tanto um distúrbio quanto um transtorno - o que poderia ter sido percebido e auxiliado se nossa sociedade levasse a saúde mental mais a sério e compreendesse melhor os pedidos de socorro dessas pessoas);

b) fator sócio-cultural (que pode ser tanto uma ideologia religiosa - não raro existem posturas homofóbicas, proselitistas e fundamentalistas por trás - quanto uma atitude de busca da fama, fazer justiça ou provar algo para o grupo a que pertence reforçada pela exposição da ação em mídia nacional e internacional);

c) oportunidades técnicas e operacionais (a facilidade para conseguir armas e munição, treinar/ensaiar o ato, acessar o local da matança, disfarçar intenções e
executar a ação sem ser prontamente interompido);

d) fator agregador, que funciona como gatilho para que a operação seja realizada em tal dia, hora e lugar (como por exemplo, ter sido demitido ou terminar um namoro naquela semana).

2) Há, sem dúvidas, um reforçamento positivo pela exposição midiática gerando a possibilidade de que imitações surjam em um intervalo muito breve (alguns sites estão apelando para que os internautas enviem vídeos e fotos sobre o massacre). Isso faz com que a possibilidade de um imitador seja real e preocupante. O comportamento de imitação é comum entre jovens e muitos se sentem representados em uma atitude como essa.

3) Não há segurança isolada contra um acontecimento dessa natureza. Aconteceu em uma escola pública apenas pelo fator c, do item 1, e poderá acontecer em qualquer outro lugar, em especial que tenha publicidade.

4) A dignidade das pessoas envolvidas (e enlutadas) não precisa ser menosprezada em detrimento de uma audiência telvisiva, pois há muitos fatores complicadores que podem transformar esse processo de luto em algo bastante complicado e dolorido; o que certamente não será respeitado pelos canais de televisão.

5) O pior dos fundamentalismos é o do capitalismo; o fundamentalismo do lucro, que permite que uma cadeia de produção envolvendo o tráfico de drogas e de armas permita que cheguem às mãos de pessoas evidentemente problemáticas soluções mediadas pela violência em preterimento a soluções baseadas em solidariedade e humanismo.

6) Enquanto nossa sociedade não olhar para si mesmo e discutir o que significa a violência que ela mesmo pratica contra seus cidadãos, não haverá paz nas escolas, nos bairros, nos hospitais, no trânsito... nos convívios sociais. Enquanto nossa sociedade não quiser corrigir as suas falhas, outros disparos serão dados, outras manchetes aparecerão... não somos lobos do próprio homem porque tenhamos uma natureza lupina; somos o que somos porque a nossa sociedade tem nos feito assim, e nós a ela.

7) Wellington disparou o gatilho, mas quem atirou, de verdade, foram muitas pessoas, direta e indiretamente envolvidas com os reforçadores e facilitadores de ações como essas, contudo, não é de bom tom que todos sejam apontados como culpados... é melhor, como disse acima, deixar a culpa de lado.

11 comentários:

Anônimo disse...

Como os dados estão sendo atualizados constantemente, já são 14 mortos, sendo 12 meninas.

Erasmo Ruiz disse...

Caro Ayala! Texto primoroso, analítico e preciso. Fiquei o dia todo trabalhando no computador escrevendo um projeto de pesquisa e de hora em hora conferia a mudança do quadro: as cifras dos mortos e o que ia sendo "desvelado" da complexidade do atirador. O primeiro erro dessa imprensa mesquinha foi tentar fazer a associação imediata de Wellingtom com o islamismo quando na verdade perceberam depois que a carta o sinalizava como cristão, pelo menos nas simbologias utilizadas. Depois, a sucessão de mecanicismos rasteiros como você bem descreveu. Agora, espere o jogo cênico de políticos buscando exposição midiática em torno dos cadáveres e prometendo mundos e fundos às familias traumatizadas. A imagem que vem agora é da náusea sartriana...uma profunda tristeza com vontade de vomitar! E ainda a reboque temos que ler os comentários dos internautas culpando a reforma psiquiátrica que teria poermitido que Wellingtom vivesse solto fora de hospícios que não existem mais. As vezes tenho a sensação de que na verdade estamos vivendo num enorme hospício sem muros e grades que consegue conviver (ou "com-morrer") com crianças sendo dilaceradas na Líbia e em Gaza, casamentos bombardeados no Afeganistão e usinas nucleares despejando toneladas de água radiotiva no mar. Diante desse quadro horrendo, Wellington é um espasmo monstruoso.

Thiago Moraes disse...

Excelente!!! mt sensato...parabens!

Suely Pavan Zanella disse...

Parabéns, a melhor coisa que vi e li hoje em meio a tantas especulações. E este é o drama da nossa sociedade: Vê algumas partes e despreza do todo, e até a sua própria responsabilidade, age de forma cindida, esquizo.
Muito bom, e se me permite adoraria publicar no meu blog com os devidos créditos.
Grande abraço

Anônimo disse...

Olá Suely

Fique à vontade para publicar no seu blog, inclusive, quando quiser que publiquemos algo por aqui (ou até mesmo, republiquemos) faça o contato e, após análise, poderemos publicar também por aqui.

Abraço

Marina Farias disse...

Muito pertinente as suas observações. Infelizmente, é difícil julgarmos quem é o culpado disso tudo, agora devemos nos indignar e buscar soluções de segurança no país

Anônimo disse...

E o papel da mídia nessa história toda? O filme Tiros em Columbineaborda com muita propriedade a influência daquilo que é veiculado sobre o comportamento das pessoas.

Alvaro Mendes disse...

Ayala,seu texto é de uma lucidez espantoso em concordância com a monstruosidade trágica do terror.Infelizmente está bem perto de todos nós.A esquizofrenia não tem cura ,mas pode ser controlada.Uma sociedade diversamente não pode ser controlada mas pode se curar de seus vícios e falsos valores constantes veiculados e reforçados por canais midiáticos e congêneres.Vou fazer de suas opiniões um farol emanador do que pensar a respeito de ...

Anônimo disse...

Gostei do texto, dizer que está bem escrito é redundante. E me fez lembrar, porque todo ano tem sempre uma manchete dessas, não apenas de massacres, mas da mídia veiculando de uma forma nenhum pouco cuidadosa as coisas que acontecem.
Caso Susana Von Richthofen. Caso João Hélio, Caso Isabella.
São casos que a mídia apresenta não em busca de justiça, não em busca de um pensamento crítico.
O perverso jogo midiático transforma o luto em circo para uma grande parcela da população, algum tempo atrás existia o programa Comédia da vida privada, estes episódios poderiam ser considerados tragédias da vida pública.

Super exposição em um período, mas quando a notícia esfria, o que fazem? Onde está a justiça? Onde o sensasionalismo barato, no qual a grande maioria das emissoras de tv pregam podem se refastelar?

Ayala, não te conheço, mas amei seu texto, e fez-me refletir sobre muitas coisas que eu já vinha pensando e tentando não ver, não pela notícia, mas pela forma como ela vem sendo veiculada.

Assinado
Dário Júnior

Helena disse...

Ayala, com atenção li e reli o seu texto. Impressionante a conjutura tão clara e precisa que faz dos fatores que "estruturaram" esse acontecimento. Foi mostruoso, como todos falam, e monstruosa a forma tão sensasionalista que foi mostrada.
Pequei "emprestado" o seu texto para uma reunião com professores. Quem sabe um dia vc irá conhecê-los. De qualquer forma muito obrigada pela grande contribuição que, com certeza, esse seu texto tem proporcionado.

Anônimo disse...

Olá, Helena
Fico feliz que vc tenha feito bom proveito do meu texto, afinal, esse é o objetivo de quem se propõe a partilhar algumas reflexões. Fiquei curioso sobre o local onde o texto foi utilizado e como foi feito. Se puder partilhar.
Abraço