"ubi est mors victoria tua ubi est mors stimulus tuus" (Ayala Gurgel)


Sabem aquelas conversas em fila de supermercado que lhe trazem verdadeiras epifanias? Pois é, hoje eu tive uma delas, sobre a morte. Encontrei em breves oito minutos com uma senhora maranhense, nascida e criada em casa dos outros, servindo-lhe a mesa e na lavagem de roupas, negra e com uma instrução invejável, inclusive conhecimento da língua latina. Ela viu meu anel no dedo anula direito e perguntou-me: "és doutor em quê?" ironizei e respondi-lhe: "isso não é um anel de doutorado, é apenas um fetiche que tenho com a morte". Ela voltou-se empertigada em seus aproximados setenta anos e um metro e meio de altura e inquiriu-me: "esse é do tipo de fetiche que não se vê todo dia, mas porque a morte te interessa tanto?" Respondi-lhe: "e não haveria de interessar?" A resposta seguinte foi a citação acima, só que completa:
 
"ubi est mors victoria tua ubi est mors stimulus tuus
stimulus autem mortis peccatum est virtus vero peccati lex"


Espantei-me ao ouvir tal citação e perguntei-lhe de onde ela sabia isso. Recebi outra pergunta como resposta: "tu entendestes o que eu disse?" "Sim", respondi-lhe, "significa mais ou menos 'Onde está, ó morte, a tua vitória? onde está, ó morte, teu estímulo? O estímulo da morte é o pecado, a verdadeira força do pecado é a lei'. Trata-se de uma citação bíblica, Coríntios, se não me engano" (aqui em casa verifiquei e sei que se trata de I Coríntios, 15:55-56).

O latim não foi o meu único espanto, mas a frase que ela disse a seguir: "Pois é, esse é um grande erro, achar que a morte pode ser debochada com versos". Perguntei-lhe se ela considerava a Bíblia um poema. Outra resposta: "não disse que a Bíblia era um poema, mas que está organizada em versos, isso todo mundo sabe."

É, todo mundo sabe que a Bíblia está organizada em versos (ou versículos), mas não paramos para pensar que ela possa ser um poema, embora os grandes livros sagrados orientais possam ser apresentados como poemas, sem nenhum problema. Nós, ocidentais, os que não gostamos de poesias, temos dificuldades para ler a Bíblia como um poema. Mas, esse é outro assunto. A conversa que tive com aquela senhora interessa-me mais, no momento.

Ela ainda me disse, e isso ficou comigo de forma bastante meditativa: "A morte é sempre a morte de alguém, a derrota ou a vitória da morte, é a vitória ou a morte dessa pessoa. Não vou me iludir e pensar que exista uma morte por aí que foi derrotada. Quem foi derrotada foi a pessoa. Eu trabalho e mantenho meu nome limpo, minha morte não vai depor contra mim. Tem gente, que quando morrer, vai ser uma vergonha. A morte vai ser uma derrota pra essa pessoa".

Não podia ficar calado e concordar prontamente, afinal, debater é comigo mesmo. Perguntei-lhe: "mas, a Bíblia está falando da morte eterna, se antes as pessoas pensavam que não havia nada depois da morte, agora têm a esperança de que irão ressuscitar". Ela só me olhou e disse, mansamente: "O senhor tem estudos e sabe que pode até haver outra vida, como prêmio ou castigo dessa, mas que depois da morte não tem mais nada a fazer. Se não fizer antes, depois tem mais tempo não. A morte pode não ser a última coisa que exista, mas ainda é o que tem de mais importante para ser pensado por quem tem juízo".

O sinal do caixa a chamou e tirou-a de mim, ela, que sequer seu nome a perguntei. Uma sábia mulher que me estimulou a meditar sobre a vitória da morte como a vitória de quem morre, afinal, a morte é imortal, quem morre somos nós.

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