A Fotografia Mortuária Não Morreu: Os "Viajantes" de Elizabeth Heyert (Erasmo Ruiz)


Sou fascinado pela fotografia mortuária. Nunca perdi meu tempo para tentar descobrir o porquê disso. Já dizem os psicanalistas de plantão que de uma forma ou de outra, todos nós temos algum fascínio pela morte. Talvez a fotografia, pelo seu poder de "congelar" a realidade, permita que nos aproximemos de qualquer evento, incluso aqueles que seriam mais amedrontadores, sem que estejamos efetivamente expostos a qualquer risco, um mecanismo parecido com o do parque de diversões.
Assim, no caso da fotografia mortuária, ela nos apresenta o cadáver, esse "maldito" objeto que a medicalização da sociedade tornou abjeto: uma entidade repleta de problemas higiênicos e que insiste em seguir a sua sina biológica de se desfazer e produzir odores terríveis e doenças contagiosas. Talvez estejamos diante da solução de um dos mistérios da fotografia mortuária. Ela cumpriria a capacidade de imobilizar simbolicamente a presença do morto, num momento em que o corpo ainda tem aquela aparência enganadora de que preservou a vida. Substituiu com eficácia o papel que era antes exercido pela máscara mortária. Cumpre portanto a tarefa de preservar a memória.
Logo após a invenção da fotografia veremos sua utilização de forma expressiva para registrar os mortos, mas não com o caráter de hoje em dia restrito a sua visibilidade jornalística, quando vemos os mortos das periferias, de todas as formas de marginalidade, sangrando profusamente nas páginas de jornais sensacionalistas.
No passado, a fotografia mortuária era expressão de um ritual afetivo. Mantinha viva a presença do morto e, ao mesmo tempo, prolongava os rituais fúnebres. Explicando melhor. O mundo do século XIX e do início do século XX não é um lugar com estradas de fácil percurso. Se alguém morresse muito distante, não conseguiríamos chegar a tempo para participar do velório e do sepultamento. A fotografia, portanto, registrava esse momento para que todos, de alguma forma, pudessem celebrar a memória. E a julgar pelas fotos que nos chegaram, elas são testemunhos inequívocos de que se lidava de uma forma diferente com a morte e o morrer. O fotógrafos faziam seu trabalho e deixavam registrados o nome de suas empresas para futuras empreitadas. E fotografias mortuárias colocadas em porta retratos sinalizam que essa imagem bem poderia ficar numa sala de estar ou ao pé de uma cama, sem necessariamente despertar sentimentos mais perturbadores do que a lembrança e a saudade.
Hoje em dia o exilamento da morte provocou uma menor visibilidade da fotografia mortuária dissociada da espetacularização da morte. Ainda assim, podemos encontrar trabalhos interessantes. Gostaria de destacar a obra da fotógrafa Elizabeth Heyert. Um dia, ela estava lendo o jornal quando viu um artigo falando sobre um diretor de funerária no Harlen em Nova York, que realizava cerimônias fúnebres no velho estilo dos negros batistas do sul dos Estados Unidos. Um dos aspectos desse estilo recomendava que os mortos deveriam estar muito bem apresentados para poderem chegar ao paraíso. E qual não foi a surpresa de Elizbeth ao constatar que isso era verdade!
Os mortos, a partir de necromaquiagem, pareciam estar vivos. Mas o que mais chamava a atenção era a forma como eram vestido: a mais bela roupa que pudesse sintetizar seu modo de viver. Foi assim que nasceu o projeto "Os Viajantes". Elizabeth selecionou as suas mais belas fotografias para compor ensaios que redundaram em exposições e na publicação de um livro. Para o gosto de hoje em dia - ele mesmo resultado de uma cultura que expurgou a morte de um contato mais direto e público - o trabalho de Elizabeth parece ser uma esquisitice sem tamanho, fruto de uma mente doentia.
Mas quando olhamos os mortos fotografados podemos ser levados a uma reflexão. Talvez se registrássemos nossos mortos, isso pudesse ser inspirador para a nossa vida. Nos lembrarmos com mais facilidade deles meio que presentificaria os bons e maus exemplos afinal, uma arte de morrer deveria estar intimamente ligada a uma arte de viver. Um dos principais legados dos mortos é pedagógico: podemos aprender com a vida que viveram o que pode ou não ser algo útil e bom para nossas vidas.
Ver um jovem vestido com a jaqueta do seu time preferido de basquete talvez sinalize para cada um de nós que não estamos investindo nosso tempo no lazer como deveríamos. Ver uma mulher idosa vestida como quem vai se apresentar num coral no céu pode também sinalizar que nunca é tarde para começar a fazer o que desejamos. Gostei tanto das fotos que planejo convidar Elizabeth para o meu enterro. Só espero estar um morto apresentável!
Para saber mais do trabalho de Elizabeth Heyert Acesse:

2 comentários:

iza sardenberg disse...

As fotos dela retratam paz!
E serenidade.

Elba Gomide Mochel disse...

Não sei se cabe nesta nesta seção de comentários mas em São Luis acaba de ser aprovada uma lei que trata de preservar se nao a apreência dos mortos, pelo menos, o lugar que lhe engoliu os restos.
Lei no cemitério – exploração da morte

O projeto estabelece, entre outras, as seguintes regras:

1) a cobrança de taxa anual de manutenção dos jazigos limitada a 10% do salário mínimo, aí incluído o pagamento dos serviços de limpeza e conservação da área livre do cemitério e preservação dos jazigos contra a depredação ou furtos por deficiência de vigilância, cujo ônus caberá aos gestores.

3) A desapropriação dos restos mortais de cadáveres só será possível após dez anos do sepultamento e com prévia comunicação aos proprietários do jazigo.  A relação dos cadáveres em vias de desapropriação deverá ser publicada em edital, com prazo mínimo de 30 dias para que seja regularizada a pendência financeira. Academias, conselhos e associações de classe poderão, dentro do prazo estabelecido, apresentar embargo, justificando a necessidade de proteção ao cadáver sepulto, com base em fatos e documentos históricos. Uma comissão especial julgará os embargos.

4) Os restos mortais do cadáver desapropriado deverão ser catalogados e acondicionados em material resistente, onde constem nome e datas do sepultamento e da desapropriação. Já a guarda dos restos mortais deverá ser feita em local adequado, não exposto e de acesso aos interessados.

5) O projeto determina ainda que a vigência dos contratos de terceirização não poderá exceder o prazo de cinco anos, após o qual haverá nova licitação.