Reprodução Humana Póstuma e a difícil tarefa de se lidar com o luto (Ayala Gurgel)


O hábito de guardar a memória de um morto associada a apetrechos físicos não é uma novidade de nossa época ou cultura, tanto quanto não o é o hábito de se desfazer de todos os apetrechos físicos que nos lembram a morte de alguém. Há casos extremos em que esses hábitos viram verdadeiras paranoias dos envolvidos, desvios morais da função primária de se desfazer paulatinamente da memória daqueles que morrem.

Recentemente, o relacionamento de um casal fora interrompido com a morte de um deles, no caso, o homem. Saiu na mídia e todo o mundo acompanha um caso semelhante na novela. O casal ainda estava na fase, digamos, do namoro, embora planejassem um futuro juntos, inclusive com filhos. A interrupção do relacionamento ocorreu antes que o casal consumasse a gravidez, o que fez com que a jovem, alegando ser um desejo do casal, convenceu os pais do jovem a levar adiante o sonho de engravidar do próprio morto.

A família procurou um centro de fertilidade humana para realizar o desejo. Com base legal em uma autorização judicial, foram retirados os espermatozóides do jovem (com diagnóstico de morte encefálica) e congelados para a futura fertilização. A espera atual é por outra sentença que permita a inseminação. Enquanto isso, a jovem vive em função de uma memória, presa ao relacionamento com um morto e alimentando o sonho de procriar uma herança genética do falecido.

Um caso do que poderíamos chamar de Reprodução Humana Póstuma. Um novo nicho para o tão promissor mercado de RHA.

O desejo de perpetuar a memória do falecido em outra pessoa, ou que um ser falecido viva em outro, vivo, ou mesmo viver em função de um relacionamento com um morto ou em função de sua vontade é a base comum de muitas doutrinas religiosas. Parece-me que não há nenhum espanto quando esse discurso é proferido em um plano, digamos, mais metafísico. Mas, não é o mesmo quando ele ocorre no plano das possibilidades, especialmente as científicas. Ou quando ocorre na vida de alguém que pode estar emitindo atitudes incompatíveis com a tarefa do luto: o desapego.

Muitas crenças religiosas ou morais ainda não estão prontas para se tornarem realidades científicas, por mais que seus seguidores a desejem.

O caso dessa jovem, como muitos outros, pode significar tanto um hábito comum a muitas gerações de pessoas, inclusive a nossa, quanto a dificuldade de lidar com as perdas, as privações e os infortúnios da vida.

Fico pensando nessa criança...

Nenhum comentário: