Na companhia da Morte com Manuel Bandeira (Erasmo Ruiz)


Imagine-se muito jovem sabendo que é portador de uma doença praticamente incurável. Qual seria sua reação? Cair em profunda depressão? Pensar seriamente no suicídio? Optar por uma vida absolutamente desregrada disfarçada no eufemismo de "intensidade"?

Para nossa sorte, diante da possibilidade de morrer muito jovem, Manuel Bandeira, acometido pela tuberculose numa época exigua em terapêuticas, produziu algumas reflexões sobre a morte. Uma delas já foi comentada nesse blog (vide post aqui). Hoje retomo Bandeira em mais três poemas. Vamos ao primeiro:

Preparação para a Morte

A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
– Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.


O poema possui uma notável beleza e profundidade. fala sobre o encantamento da vida, do que ela tem de mais arrebatadora, seu caráter aparentemente inexplicável, dai a idéa de que ela seja um milagre em todas as suas manifestações. Mas então o poeta nos apresenta a morte como algo que não é milagre. Talvez pelo fato dela ser onipresente e comum. Por que seria a morte adjetivada como "bendita"?

Para o poeta ela terminaria o milagre. Talvez devêssemos ser tomados pela angustia da iminência da morte para perceber este sentido em Bandeira. O milagre da vida pode se tornar sufocante se imerso na dor e no sofrimento. Um vellho que antevê a morte escreveria esse poema. mas dentro dele continua pulsando o jovem de "Penumotórax"


Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Do meu ponto de vista é esse Bandeira de "Pneumotórax" que estará presente até o fim de sua vida meio que fantasmático em quase todos os poemas sobre a morte. A preparação para a morte ainda muito jovem exigiu dele reflexões intensas sobre o viver e a constatação da impotência do se impedir a morte levou a construção de potência de vida.

Diante da ausência de possibilidades concretas de se intervir na tuberculose, restava pensar na morte e tocar um tango pode ser então o movimento da vida, sua intensidade, lubricidade e também tragédia. Asl etras dos tangos nos remetem invariavelente para estas três vertentes. Por consequência, é preciso viver o milagre:


Poemeto Erótico


Teu corpo claro e perfeito,
- Teu corpo de maravilha
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha...

Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa... flor de laranjeira...
Teu corpo branco e macio
É como um véu de noivado...

Teu corpo é pomo doirado...
Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume...
Teu corpo é a brasa do lume...

Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes...
É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,

Que em cantigas se derrama...
Volúpia de água e da chama...
A todo momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha

No oceano do meu desejo...
Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...

Estar cheio de vida, ou, como nos mostra Bandeira em outro poema, "absorto em vida", pode nos fazer passar ao largo da morte pois a vida carece de total sentido apriori do próprio viver. O milagre da vida nos trai ao sinalizar que um dia ele termina.

Mas, ainda assim, viver significa aproveitar ou, então, se aproveitar da oportunidade miraculosa que é a vida. Afinal caro leitor, não somos milagres probabilísticos? Eu, você...todos nós somos medalhistas olímpicos de uma corrida de milhões de espermatozoides. Aproveitem o milagre enquanto ele pode ser desfrutado pois um dia a bendita morte ira por fim a ele.

Uma das melhores formas de aproiveitar o milagre da vida pode ser cultuar a maravilhosa poesia de Manuel Bandeira!








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