A Morte Abandonada nas Ruas (Erasmo Ruiz)


A morte em seu sentido absoluto é algo inevitável. Claro, podemos adia-la em muitas circunstancias, mas em algum momento teremos que paradoxalmente vivencia-la. O contexto é difícil de determinar e, de uma certa forma, só as pessoas que cometem suicídio possuem a "liberdade" de escolher hora e lugar para viver a própria morte.


Em muitas circunstâncias podemos ser surpreendidos. É a morte pelo assassinato cruel nas periferias como acerto de conta de dívidas de drogas. É o enfarto de quem fazia uma simples caminhada. É o acidente de trânsito onde o motoqueiro é colhido pelo carro quando tinha a preferencial. As vezes os mortos não são encontrados apenas nos hospitais. Eles também podem se visibilizar de forma dramática nas ruas onde trafegamos absorvidos pelas coisas da vida.

Quando a morte acontece nas ruas, seja com evidentes sinais de violência, seja de maneira súbita e imprevista, um complexo conjunto de normas precisam ser respeitadas, circunstâncias apuradas, medidas legais tomadas. Não pode pairar nenhuma dúvida sobre o que aconteceu. Caso a mortee tenha sido reultado de dolo, culpados precisam ser encontrados e punidos.

Os cidadãos comuns raramente posseum a visibilidade dessas circunstâncias. Elas aparecem repentinamente no  telejornal sensacionalista patrocinado por medicamentos que aliviam a dor de hemorróidas ou apregoam que seu ente querido irá parar de beber se o remédio for misturado a comida.

Os cadáveres aparecem desfocados pelas trucagens na ilha de edição de vídeo. O reporter com ar de investigador entrevista testemunhas e policiais mais ou menos ciente de seu importante papel para que a pomada contra hemorroidas desencalhe das prateleiras da farmácia.

No conjunto de atores que aparecem nessa novela sem beijo e pares românticos, eis que surge a figura do perito criminal. Mas não com o glamour dos seriados americanos. Não dispomos de tecnologia sofisticada. Muitos deles inclusive, movidos por suas consciências sociais, aparelham-se, compram boas câmeras fotográficas porque sabem que o Estado não considera uma função importante como sendo de fato importante, mesmo que nos discursos isso seja sempre negado.

Nesta semana que passou esse ator retirou-se de cena. Resolveu como qualquer outro trabalhador fazer greve. Os motivos são os de praxe, salários aviltados e falta de perspectiva de carreira. Numa cidade como Fortaleza que em sua região metropolitana ultrapassa os três milhões de habitantes, apenas uma equipe de peritos foi mantida em trabalho constante diante de uma situação que anteriormente já era precária. Antes da greve apenas três quipes não davam conta da verdadeira guerra urbana entre acertos de contas do tráfico, imprudência no trânsito ou simplesmente um arteroma que resolve mostrar-se ao mundo enquanto alguém fazia ginástica.

Com apenas uma equipe de peritos correndo pelas ruas, cadáveres esperavam até quase 9 horas para serem removidos..eu disse quase 9 horas. Mas um momento. Cadáveres não esperam. O papel de esperar não é dos mortos. pelo contrário. Talvez os mortos tenham deixado de esperar por tudo pois já descobriram (ou não) a resposta para a pergunta da existência. Quem espera na verdade são os vivos.

E os vivos esperaram. Mães velaram filhos envoltos a poças de sangue no meio fio das calçadas num sol tórrido. Filhos desesperados ficaram ao lado do cadáver de pais mortos em acidentes de trânsito. Os mortos abandonados nas ruas ao lado de vivos em meio ao abandono. Nessas horas é fácil culpar os peritos criminais por tamanha barbárie. Como tiveram o atrevimento de expor as pessoas a dor e sofrimento amplificados? Mas em meio ao trágico basta que se apure o olhar para percebermos o tamanho do abandono.

O poder público acha hoje mais importante investir na copa do mundo. Para isso, que se institucionalize de vez a corrupção ao transformar o orçamento de tais obras em "segredo de Estado". Em Fortaleza existem obras faraônicas sendo levantadas. Mas há que se ter responsabilidade administrativa quando se discute salários de funcionários públicos, aindam mais de peritos que ficam bisbilhotando os segredos da morte.

A maneira como lidamos com a morte diz respeito às formas como lidamos com a vida. Mortos e vivos estão abandonados nas ruas de Fortaleza!

http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1009303

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