O FILME "SUBSTITUTOS" E A RELAÇÃO DA HUMANIDADE COM O MORRER: COMO SALVAR A HUMANIDADE DA MORTE? (Renata Façanha*)



De acordo com a psicanálise, inexiste no inconsciente humano qualquer representação simbólica da morte. A morte permeia o inominável, o obscuro. A morte é o real nome da total impotência humana diante da grandeza do universo. No entanto, se, por um lado, a morte é irrepresentável, inaceitável ao homem em seu complexo de super-herói, por outro, caminhamos, mesmo quando ainda nem sabemos, em direção a ela – alguns a passos mais lentos, outros, em uma corrida desenfreada –.
Os psicanalistas também dizem que todas as criações humanas advêm de vazio fundante do ser humano que somos, como uma eterna busca para recuperar algo que nem sabemos o que é, mas queremos, uma espécie de nostalgia do objeto perdido. Assim, criamos porque algo nos falta, mas aquilo que criamos nunca é aquilo que nos falta realmente: é sempre e sempre outra coisa qualquer. Freudianos a parte, criamos, estudamos, trabalhamos também porque simplesmente nós desejamos atingir, ilusoriamente, a imortalidade – simbolicamente a princípio, mas, literalmente se não for pedir demais – .
O recente boom dos centros de estética e beleza mostra nossa necessidade de disfarçar nossa condição falha, imperfeita e suscetível à morte. Aliás, em uma rápida pesquisa no novo fenômeno de marketing, os sites de compras coletivas, percebemos que ofertas de peelings, massagens redutoras de gorduras e cabelereiros ocupam o ranking de ofertas. Isso porque precisamos que nosso corpo exale vitalidade, desejamos ficar mais jovens, retardar a marcha do tempo que impreterivelmente p a s s a á revelia de nosso desejo. Precisamos ser saudáveis. A vida com adoçante e sem sal é muito mais segura, ainda que sem graça, gosto ou gordura trans...
Também tememos sair de casa, compramos pela internet, não falamos com estranhos, temos medo de batida de carro e assalto a mão armada. Relacionar-se através da segurança virtual é muito mais interessante que tomar uma cerveja com amigos em qualquer mesa de bar. Escondemo-nos uns dos outros. Contato físico? Só do médico.  
E se pudéssemos viver, trabalhar, andar pelas ruas, transar, através de máquinas enquanto protegemos deixamos nosso corpo enclausurado em quartos? O filme Surgates retrata na ficção esta hipótese de forma tão trágica que beira a comicidade: em 2054 uma empresa – VSI – cria uma máquina capaz de substituir o corpo humano em suas atividades diárias: o seu operador pode fazer todas as atividades do conforto de seu quarto e o melhor, a máquina, ou substituto, ocupa a forma de um ser humano esteticamente tão idealizado quanto o seu operador queira. Logo, todas as pessoas ficam se trancafiam para encarar o mundo vivem através de seu substituto. Agora a humanidade está em segurança de si mesmo: é o substituto quem se destrói em casos de violência. É o substituto quem trabalha, estuda, sai de casa. O sexo nunca ficou tão seguro depois deles.
Em meio a essa sociedade asséptica, grupos de dissidentes vivem em reservas – é preciso preservar o que está em extinção – sem qualquer aparato tecnológico. As pessoas que resolvem viver fora da reserva sem um substituto são chamadas pejorativamente de “saco de carne”. Assim, um ser humano sem o seu substituto é sumariamente desprezado, negado, isolado, repudiado porque se transfigura na própria imagem da morte. Um homem sem o seu substituto lembra aos demais a fragilidade da vida, o irremediável da morte e da imperfeição da existência humana.
A trama se desenrola a partir da criação de uma arma letal em poder de uns dos ex-sócios da VSI, a arma, quando disparada contra um substituto, tem o poder de liquidá-lo, mas também danifica seu chip de segurança, dispositivo criado assegurar que o operador fique incólume diante de possíveis agressões físicas ao seu substituto. Assim, não apenas o substituto morre, mas o seu operador é eliminado mesmo a quilômetros de distância de sua máquina. O clímax do filme aloca novamente o homem em sua posição primordial de fragilidade em relação à morte, à falta de controle as intempéries da rotina: ainda não é dessa vez que o ser humano encontra a fórmula da vida eterna.
No final, o próprio paradoxo da existência humana: avatares com suas cores vivas, suas belezas atemporais perfeitas, caídos no chão como corpos mortos inertes representando a morte da juventude e da perfeição estética enquanto, ainda tímidos, pessoas com suas cores mórbidas, gordas, caquéticas e malcuidadas saem às ruas. A vida fragilidade humana contrastando com a perfeição morta parece mostrar a humanidade em processo de aceitação da falibilidade do conhecimento humano para lidar com a morte, como uma metáfora de toda a tecnologia e conhecimento humano aos pés da invencível fugacidade da vida.       
*Renata Façannha é acadêmica de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará

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