Segredos do Tempo (Jacqueline Abrantes*)


Fim de tarde. Convite para um pouso sobre os versos de Alberto Caeiro: “É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol, uma nuvem passa a mão por cima da luz e corre um silêncio.”

O sol, antes de partir, derrama-se deixando atrás de si insuportável e triste beleza. Os pássaros se recolhem e o silêncio se espraia. Como se a dor embriagada de vermelho clamasse pelo vento da noite enquanto o corpo suplica para recolher-se ao som de triste melodia. Saudade. Triste lamento das rodas de um carro de boi pela estrada. Água corrente cansada de riacho. Vozes escutadas ao longe. Pavios acesos de lamparinas ao vento; lampejos na escuridão. Saudade sabor de sertão. Cheiro de mato. Rede vazia, parada. Vazio inconformado.  “Ausência assimilada”, diria o poeta Drummond: “a ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.”

Essa “ausência assimilada” e quieta da tarde convoca as lembranças dos que se foram. É possível ancorar a saudade no que está ainda vivo marcando corpo, gestos, palavras, sons, instantes...mãos de avó com cheiro de sabão feito em casa  a passear pelos cabelos, avô fazendo contas “de cabeça”, cantigas entoadas noite a dentro.  

Recentemente, a irmã de uma grande amiga se foi.

Na infância, seu corpo fora acometido por uma síndrome rara; negava-se a crescer. Não resistiu a uma pneumonia que se agravara. Em trinta e cinco anos vividos, permanecera pequena como uma criança. Sua irmã fora sua companhia até os últimos momentos. “Tenho direito à acompanhante. Sou especial.” Dissera à equipe do hospital no momento em que entrara na UTI. 

Em seus escritos, fora encontrada uma linda história de uma menina que, repousando em uma nuvem, ansiava por descobrir os segredos do senhor tempo perguntando-lhe “quanto tempo o tempo tinha”. 

 Lembranças do tempo dela... na praia, nas festas entre os amigos, na cama rodeada por sobrinhos, brincando na cadeira de rodas ou passeando nos braços de alguém. Um sorriso era a sua marca em qualquer que fosse o tempo. 

Naquela manhã, o sorriso permanecera iluminando seu rosto. Sobre o véu branco de bordas rendadas, um lírio repousava delicado no alto de suas pequenas mãos. 

Nos olhos de sua mãe e dos amigos, nos abraços, nas palavras não pronunciadas, era possível sentir os instantes/tempos da vida que se tornam eternos: na dor que nos religa, na ternura que nos une, na confirmação dos nossos afetos, da nossa vulnerabilidade e força. Porque precisamos do outro para que ele nos faça viver. Precisamos do outro para sentir que cada ser é especial.

“Você nos tornou pessoas melhores”. Foram as palavras ternamente ditas pela irmã ao se despedir. 

O outro que se foi ainda está em nós. Tornou-nos alguém melhor. Fez-nos mergulhar com alegria e intensidade na beleza das coisas simples; nas coisas divinas do mundo das quais nos falava o poeta Vinícius: “a coisa mais divina que há no mundo é viver cada segundo como nunca mais..." Segundos vividos que de tão intensos duram uma eternidade; tornam-se “ausências assimiladas” dentro de nós.

Talvez este seja um dos segredos do tempo.


*Jacqueline Abrantes é Enfermeira da Estratégia de Saúde da Família no Município de Natal-RN

7 comentários:

Anônimo disse...

Fiquei muito emocionada com o relato. Recentemente perdi uma amiga em condições muito parecidas. Seria ótimo se as pessoas pudessem dividir suas histórias de perdas. Acho que isso ajuda a suportar melhor a dor. Muito obrigada! Beijos. Camila

Maria Regina Canhos Vicentin disse...

Jacqueline, parabéns! Que texto maravilhoso, profundo, tocante... Bem que Erasmo a considera escritora, e você o é. Adorei a terminologia "ausência assimilada", pois é assim que precisamos fazer, às vezes, para não sucumbir junto de nossos queridos que se vão, e nem sempre pela morte. Grande Abraço, Maria Regina.

Rejane Guedes disse...

Nas palavras da Jacque compreendo o seu recolhimento silencioso na hora do pôr do sol.
Palavras de poeta, palavras de gente que sente o que pensa e que pensa considerando o sentimento.
JACQUElinda, você é nossa estrela guia.

Joao Bosco Filho disse...

Ola Jacqueline obrigado por me permitir tão linda leitura... Embalado por "As canções que vc fez pra mim.." terminei em lagrimas a leitura do seu texto, mas me permiti viver cada letra que compunha as palavras, cada verso que gestava a poesia, cada palavra que me fazia me sentir gente... Quantas "ausencias assimiladas", quantas saudades renegadas, quantos sonhos desfeitos, quanta vida por viver... mas é assim amiga... viver é uma dadiva, viver bem um desafio, viver intensamente uma necessidade, pq no fim, que tambem pode ser um começo o que vale a pena é ter vivido, amado e sido feliz... Obrigado por existir em minha vida...

nercinda Claresminda. Heiderich disse...

Vi, sim, Jacqueline!

Emocionante! Chorei ao ler!
Parabéns, pelo belo talento de colocar no papel, as nossas dores, sentimentos, muitas vezes reprimidos por não conseguirmos expressar senão, através de comportamentos incompreedidos.

Como estou? Na luta!
Há próxima audiência será no dia 24/11/2011 onde serei jugada...Imagina!!!
Beijos

Jacqueline Abrantes Gadelha disse...

Queridos!
Não sei usar direito o blog, mas vou tentar responder os comentários de tod@s aqui. Inicialmente, tive receio de publicar algo tão "pessoal, mas este receio logo se dissipou ao ler os comentários de vocês.
Sim, Camila, acho que expressar a dor ajuda a suportá-la. No meu caso, escrever ajuda muito.
Receba o meu abraço.

Maria Regina! Sabe que foi uma grande surpresa ler seu comentário; fiquei muito contente! Parece-me que uma das coisas que você e Erasmo têm em comum é a generosidade...grande beijo, Regina!

Rejane!Estrela guia? Quem dera, amiga! Essa ideia só pode ser... da Bela da Tarde! Bjs

João Bosco!
Suas palavras nos fazem mais "gente". Vivamos intensamente, então. Como se cada canção fosse a última. Obrigada a você!

Nercinda! Que bom tê-la por aqui com sua sabedoria.Estamos torcendo por você. Receba um afetuoso abraço.

Obrigada, Erasmo, por oportunizar esta troca de afetos.

Jacqueline

Jussara disse...

Amiga Jacka, vivenciamos juntas esse momento tão difícil para nossa amiga.... e vc vem com esse relato emocionante. Vc consegue colocar em palavras aquilo que todos nós sentimos e não conseguimos dizer. Vc antes de ser uma escritora vc é uma "sentidora"(sei que essa palavra não existe, rsrs.