Chico Anysio: a autonomia e a distanásia (Ayala Gurgel)

"Eu não tenho medo da morte, tenho pena de morrer". Com esse mote, Francisco Anysio Paula Filho, o Chico Anysio, tornou autorizado o debate sobre os procedimentos médicos em torno de sua morte e a questão da autonomia e respeito à vontade soberana do moribundo.


A frase, dita em meio a uma entrevista logo depois que ele tinha se recuperado de 110 dias de internação, dos quais 78 em UTI, foi levada bastante a sério por médicos e familiares nos episódios clínicos seguintes. E não deveria?


Por um aspecto, eminentemente teórico, a assistência ao ator de 82 anos caracteriza uma prática obstinada de procedimentos distanásicos: uma terceira internação (22 de dezembro de 2011) com quadro clínico apresentando hemorragia digestiva seguida de pneumonia, falência renal e dependência tecnológica de ventilação mecânica, vindo de uma internação prolongada (110 dias em decorrência de dificuldade aguda respiratória culminando em uma angioplastia) e outra de 22 dias com infecção urinária, cuja alta foi revertida logo em seguida. O resultado, por mais desejado que não fosse, contradizia o esperado: parada cardiorrespiratória e falência múltipla dos órgãos decorrente de choque séptico causado por infecção pulmonar.

Os médicos já sabiam de sua terminalidade, se não antes, no início de janeiro quando retiraram a ventilação mecânica e houve piora do quadro, submetendo-o a novos procedimentos invasivos e inúteis (lapartotomia exploradora para saber os motivos de sangramento intestinal) e hemodiálise. Esse quadro, graças às drogas, apresentou melhora ao custo de danos irreparáveis em seu sistema imunológico global, culminando em retorno da pneumonia e da dependência de ventilação mecânica, cuja consequência inevitável e iminente seria a morte.

Contudo, essa ciência não foi suficiente para afastar qualquer possibilidade menos invasiva e distanásica de tratamento. A insistência em manter os procedimentos abusivos foi reforçada e mantida até o final (especialmente as sessões de hemodiálise), quando, em 21 de março de 2012, o quadro clínico apresentava queda da pressão arterial e falência dos rins, e na tarde de 23 de março, a morte.

Existem alternativas a esse paradigma assistencial, que segundo alguns é mantido por três elementos básicos:
  1. a subjetividade médica (o orgulho, a ideia de morte como fracasso, uma ideia equivocada de esperança e o paternalismo hipocrático);
  2. o despreparo acadêmico (muitos profissionais estão desatualizados nas questões éticas, humanistas e paliativistas); e,
  3. a empresa médica (esses procedimentos geram muitos lucros, não só sociais, mas especialmente econômicos)
Contudo, a composição teórica que apresenta esse quadro como uma prática distanásica pode encontrar algumas dificuldades, aos moldes da Bioética principialista norte-americana, especialmente quando encontramos uma manifestação explícita do paciente autorizando qualquer prática que lhe salve a vida.

Vejamos algumas razões que justificariam a distanásia que foi praticada em seu caso:

  1. O ator creditava à oração do povo o motivo de sua recuperação. Não tinha sido o trabalho da equipe médica, mas Deus quem o salvara. E esse não poderia fazê-lo novamente, em internações futuras? O mesmo povo que foi atendido uma vez, não poderia ser atendido novamente?
  2. O ator manifestou o desejo de viver até os 100 anos, pois isso satisfaria o sonho de ver os seus netos crescidos;
  3. O ator e seus familiares acreditavam em uma potencialidade médica de reverter o quadro clínico e prolongar a vida, bem como desejavam isso para si;
  4. O arrependimento pela escolha de ser fumante durante anos justificaria agora as ações terapêuticas para apagar um erro do passado;
  5. O ator declarava ter problemas psiquiátricos e que era acompanhado há 18 anos para cuidar de uma depressão, o que poderia ser agravado diante da informação de que era paciente terminal, sem possibilidades terapêuticas de cura e que morreria em breve.
A pergunta que colocamos é: essas foram mesmo as condições consideradas para se praticar o que foi feito ou estão apenas em um contexto de justificativa? O fato de um paciente manifestar certos desejos e vontades  distanásicos, bem como apresentar certos riscos psiquiátricos, são fortes o suficiente para não apresentarmos alternativas paliativistas? Devemos considerar tão soberana a sua vontade nesses casos, especialmente quando não a consideramos em outros? Foram dadas essas alternativas? Chegou-se a falar em cuidados paliativos para o ator e seus familiares?

Outras questões: o luto que a família do ator, e seus fãs, enfrentam agora, não poderia ter sido mais amenizado se houvesse uma fala mais honesta sobre a terminalidade dele? Essa forma de morte permitiu ao ator e seus familiares realizarem os seus rituais de despedidas? A morte do ator é uma consequência de uma escolha (ser fumante) e a forma de sua morte é uma consequência de suas crenças na medicina e em uma força salvífica sem limite, isso não pode agravar as reações ao "fracasso terapêutico" que era esperado?


As questões em torno da morte e do morrer não são as mais fáceis e não envolvem apenas subjetividades ou procedimentos técnicos; envolvem todas as industrias capitalistas existentes, das empresas médicas à indústria cultural. Afinal, o que seria melhor para um ícone da globo: definhar como um moribundo em sua casa ou morrer às escondidas em uma UTI?


para ler mais sobre Chico Anysio, acesse: http://pt.wikipedia.org/wiki/Chico_Anysio

6 comentários:

Maria Goretti Maciel disse...

Muito bom, Gurgel.
Temos que levantar estas questões quando diante de alguém tão importante e querido no nosso país. Porque a morte de uma celebridade sempre levanta as expectativas com relação à morte de todos nós, comuns mortais.
O código de ética da nossa profissao, em seu princípio fundamental de número XII diz claramente: "Nas situações irreversíveis e terminais deve o médico evitar procedimentos diagnósticos e terapeuticos que prolonguem a vida do doente e oferecer a este todos os cuidados paliativos disponíveis."
Pelo visto, nenhum cuidado paliativo foi oferecido. A doença que o matou - Doença Pulmonar Obstrutiva crônica ou DPOC como a chamamos, é uma doença terminal e ja merece abordagem do Cuidado Paliativo desde o início, preparando precocemente o doente e sua família para os desdobramentos que pode ter.
Usar manobras de reanimação cardio respiratória neste contexto, como foi anunciado.... Sem comentários. Contraria inclusive as diretrizes da propria AMIB - Associação De Medicina Intensiva do Brasil.
Lamentável.
O melhor comediante do Brasil teve uma morte desgradamente distanásica!

Muito ainda o que ensinar e compRtilhar

Anônimo disse...

Ola Gurgel seu texto me lembrou a morte do Michel Jackson cujo uso abusivo de analgesias o levaram a morte. O medico foi condenado por atender aos desejos desenfreados de um paciente na verdade dependente das medicações.
Claro que os casos são bem distintos em relação ao quadro terminal em que se encontrava o Chico, mas sera que os médicos não seria igualmente condenados se ele houvesse manifestado um desejo de dar fim ao sofrimento?
Acho que sim, a sociedade Brasileira não esta preparada para atos tao corajosos.

Bjs Patricia

Anônimo disse...

Eu não tenho medo de morrer, tenho medo de sofrer desnecessariamente. Sempre falo isto nas minhas conversas sobre a morte.

Assim, Sou desfavorável a distanásia. Prolongar a vida de modo artificial, quando não há nenhuma perspectiva de cura ou melhora, não quero pra mim. Quero morrer com dignidade, recebendo apenas os cuidados necessários, nada mais que isto! Fica registrado aqui o meu desejo!

Um abraço!

Emília

Julio Cesar disse...

Na realidade a medicina Paleativista tem que ser divulgada,nós os médicos temos que ser educados,e quanto ao desejo do paciente, um diálogo com a própria família é muito importante, assim como o desejo de doação de órgãos.

O Casúlo disse...

Querido Gurgel,

Acredito ser este o grande paradigma de nossos tempos, temos lugar para discutir sobre nossos moribundos? É permitido a nossa sociedade ou profissionais de saúde falar sobre a morte? Estou saindo agora de uma graduação em Enfermagem, que discutir sobre morte era citado como mórbido, sendo que estamos nos formando para cuidar dos que nascem, adoecem e morrem, penso enquanto sociedade estamos caminhando a passos lentos(mas caminhando) em relação aos nossos pacientes fora de possibilidade de cura e seus familiares, o grande déficit começa em nossa educação, não só na graduação é muito além. Fico pensando se esta oportunidade, esta escolha foi dada ao Chico e seus familiares ... Pois existe uma abordagem,uma filosofia, um cuidado se assim posso dizer para este paciente e seus familiares... Em pensar que em algum tempo atrás existiu profissionais que confortavam, aliviavam, paliavam seus doentes em seus lares... Posso dizer que o capitalismo é "selvagem" assim como relata o Philippe Ariès em seus aspectos em relação à morte. Deixar de pensar ou falar da morte não vai retardá-la ou evitá-la.

Um fraterno abraço!
Emiliana Côrtes

vini disse...

"Às vezes eu chego cedo demais. Apresso-me, e algumas pessoas se agarram por mais tempo à vida do que seria esperável." Markus Zusak em "A menina que roubava livros"

Temos nos agarrado em uma certa cientificidade de uma medicina que quase sempre não prepara seus praticantes para lidar com o fato mais concreto de nossa existência... Doutores sem (com)ciência da morte!
Vinicius